sábado, 31 de agosto de 2013

Lília Tavares




Quebrámos o vidro do silêncio azul,
vencemos a ausência dura dos dias,
rompemos a ténue barreira do sonho
e voltámos às claras águas.

Flutuo e entranho-me
no limbo do teu corpo
líquido
como as chuvas apetecidas
em noites quentes.

Leva-me na jangada
dos teus braços em arco,
embala-me na madrugada
que não tem margem nem fim.

 
Lília Tavares, in “Parto com os Ventos”, página 68, edições Kreamus, 2013. Esta obra é ilustrada com esculturas de arame de Simone Grecco.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Aos Bombeiros de Portugal e do mundo


Incêndio na Serra de Sintra, 2007. Por Gonçalo Lobo Pinheiro.


Uma correria intensa
o acudir aqui e ali
o vir atrás e à frente
entre tanto subir e descer,
calcorreando
caminhos que não o são
de manhã ao anoitecer.

Um motor que não trabalha
uma mangueira que não chega,
um atropelo que atrapalha
e o fogo que não sossega.

Um auxílio que não chega
um grito que se não ouve…
um incêndio que não despega
nesta luta que se louve.

Um corrupio transpirado
uma réstia de esperança,
um lutar inacabado
num louvar duma aliança.

Um explodir inesperado
uma chama traiçoeira…
um trilho desencontrado
para limpar tanta asneira.

Flagelo de tanta mágoa…
de um isqueiro provocador,
atirado de qualquer maneira
em enredos de fumo e dor.
Pelas atitudes desmedidas
de muito prevaricador…
que consomem, não só a vida,
mas a imagem do Criador.

Nesta luta inabalável…
queimo a pele e esfolo o braço!...

Que apesar do meu cansaço
não me omitirei de lutador
e neste meu humilde traço
darei a vida... até à última dor!...

 
António MR Martins

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Prates Miguel




POEMASSIMILAR

 
O poema não tem de ser mole
basta ser coisa que se trinca, mastiga e engole.
Não tem de ser pastel que engasgue
nem folha de papel que se rasgue.

O poema tem de ser transparente e assimilado
poema opaco resulta em fracasso
é nó cego que nunca será laço
é porta fechada a cadeado.

O poema não pode ser escrita camuflada
tem de revelar-se à vista desarmada
e dispensar senha, lupa ou outra lente
tem de ser aberto, claro e evidente.

Poema brejeiro não deve ser abortado
nem tido por grosseiro e malcriado
qualquer palavra inventada não pode ser proibida
é absurdo sacrificá-la. Tem direito à vida.

 
Prates Miguel, in “PoeMAnel”, página 19, Folheto Edições & Design, Leiria, 2013.

Tens o mar em teus olhos




Nos teus olhos vi o mar
em rasgada ondulação,
onde o mito foi naufragar
em navios de imensidão.

Neles vi a poesia ensaiar
em parte eleita por certa
e os gorgulhos a rejubilar
a escrita de forma aberta.

Em teus olhos escrevo
a palavra que desperta,
no sentir do teu olhar
e em plena descoberta.

Nos teus olhos vi o mar
oceano da profundeza,
onde nada pode igualar
o divino de sua beleza.

Vi o mar nesses olhos
em miragem tão perfeita,
um mar onde os escolhos
agem de forma escorreita.

Nesses olhos interiorizo
a luz de tanta presença,
sem fazer qualquer juízo
sobre a sua tez tão densa.

Nos teus olhos vi o mar
enorme sentido de alegria,
envolvência de encantar
como se fora pura magia.

 
António MR Martins, in “Margem do Ser” (a publicar).

sábado, 24 de agosto de 2013

Clara Maria Barata




Despedida

 
Despedida
é saudade carpida
no cais da tristeza

é alongar os olhos na lonjura
cegar a luz
e anoitecer

é um barco que dói
e se demora
no escoar lento das horas

é guitarra a gemer
em dedos de solidão
no pano rasgado do sonho
coração ao relento
grito sufocado na raiz

é voo de ave
derramando penas

 
Clara Maria Barata, in “O sol disse-me que amanhã acorda cedo”, página 44, edições Temas Originais, Coimbra, 2012.

portas


Imagem da net, em: www.campinasvirtual.com.br


cerram-se à noite
quando as gentes regressam
ao calor dos lares
nos seus interiores há sempre uma cadeira
às vezes
um soalho que serve de descanso
para uma noite que teima em tombar
nas camas da acalmia
e do sossego
às vezes
envolto de sobressaltos

abrem-se
pelo amanhecer
na frescura de cada novo dia
onde a esperança
volta a palpitar
nos peitos da continua espera

entreabrem-se
quando a despedida surge
para lá de todas as memórias
e no esquecimento de tantas vidas
quando outras vidas
também acontecem

fecham-se para sempre
quando a ruína tudo encerra
e as forças não alimentam as almas
provocando um desvanecer
que jamais terá novo regresso
até ao simples abater

 
António MR Martins, in “Margem do Ser” (a publicar).

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Graça Alves





PALAVRAS

 
Tenho, às vezes, abraços agarrados às palavras. Redondos.
Quentes. São abraços de casa, são abraços de amigos, são
abraços da terra onde me guardo todos os dias. São abra-
ços que a vida me escreveu como se escreve um poema:
escolhendo as imagens mais doces, procurando as rimas
mais ricas, fazendo de mim quem sou.

Tenho palavras para dar. As minhas. As de outros. As que
o silêncio me segreda quando fecho os olhos e procuro
dentro de mim o que me falta.

Tenho palavras. E mãos. E abraços. Não tenho mais nada.

Graça Alves, in “Palavras de Cristal”, Colectânea de poesia, Volume I, página 160, edições Modocromia, Junho 2013.

Escrever na tela


Tela pintada a óleo retratando o campo e o interior,
por Gilberto Tavares.


No pincel da doçura
pela tinta que espreme
se enreda uma bela tela

Nos guaches coloridos
ou nos óleos da perfeição
se saboreia a roupagem

No pastel incorporado
ou na china que é tinta
se envolvem os condimentos

Nas colagens mais propícias
e nos cortes que as rodeiam
se enfeitam as virtudes

Nas aguarelas espontâneas
e no contexto do papel
se deliciam os resultados

Nos horizontes perdidos
nos vales rios e montes
se envolve a inspiração

 
António MR Martins, in “Margem do Ser” (a publicar).

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Ana Paula Mabrouk




tentação

não sei resistir
nem quero

trago o teu gosto
colado à pele
e quando não estás
sonho-te a toda a hora
respiro-te a cada segundo
tenho-te em mim
alter-ego que nunca dispo

és ânsia desmedida
queimando até ao ínfimo
corroendo as vísceras
dilacerando as veias

pujante
converges em mim
e eu em ti
me transfiguro

Ana Paula Mabrouk, in “Paixão em 5 atos”, ato II, página 40, edições Versbrava, Porto, Junho 2013.

O esfumar dos sentidos


Imagem da net, em: www.orm.com.br


Pousam as bactérias dormentes
nas vestes duma terra em flor,
avistando as abelhas,
borboletas e todos os seres esvoaçantes,
que as vão transportar…
soltando-as
noutros caminhos e noutros poisios.

As aves observam a contenda
chilreando sua alegria,
pelo futuro gosto de cada sedução
ou na eficácia de um produtivo alimento,
que se lhes predispõe…
sem possibilidade de qualquer fuga inventada.

E então
a bicada tem-se como eficaz e libertadora.

Noutro lugar qualquer,
sem sujeição e arbítrio,
onde as medusas ensaiam cânticos,
outrora estagnados,
as respostas tardam em acontecer
e o prurido reduz-se à insignificância.

Restam os sonegares solenes
onde se segreda o silêncio das pedras
a cada amanhecer sem claridade.

 
António MR Martins

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

José Carlos Moutinho




Cores da saudade

 
Num domingo tudo terminou,
o efémero fez-se presente
no tempo do teu amor!

Agora, pinto a tua imagem
na tela da minha memória,
com as cores da mágoa,
desilusão e saudade!
Na paleta da realidade,
vejo como frágeis
eram as tintas
do teu sentimento;
Bastou uma simples gota de água
de discórdia,
para tudo se apagar!

Foi uma ilusória pintura,
com tons de falsidade,
neste quadro de paixão!
Quem sabe, um dia…
uma suave brisa
traga notícias de outrora.

 
José Carlos Moutinho, in “Cantos da Eternidade”, página 73, edições Versbrava, Porto, Março 2013.  

O destino do poema


Imagem da net, em: www.moblog.whmsoft.net


É nas noites que me calo
e as palavras se sonham,
no passar do intervalo
da espera que as acolham.

É nos dias que mais escrevo
registos então sonhados,
com ternura as descrevo
em versos bem perfumados.

É no inspirar que medeia
os sons imaginários,
pelo sonhar acordado.

E nos termos trago ideia,
para os destinatários
ter poema determinado.

 
António MR Martins, in “Margem do Ser” (a publicar)

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Carla Furtado Ribeiro




INVOCAÇÃO

misterioso olhar
pleno de estrelas
infantilmente presas
às meninas dos teus
olhos e que num repente
me adormecem de silêncios
és tu que vens chamando
pelo meu nome
e és tu que chegas
pleno das ternuras
com que alimentas
a raiz dos meus afectos
e depois chamam-me doce
mas sou tua
eu sou apenas
o afluente
dos teus gestos

Carla Furtado Ribeiro, in “[ EM SILÊNCIO ]”, página 30, edições Chiado Editora, Lisboa, Agosto 2013.
 
P. S. - Um belo livro de poesia, com outra relevância apensa: "Esta obra não segue o novo acordo ortográfico".

A ti, eu anseio




Como te anseio,
pelos penhascos da vida,
nos obstáculos perdidos,
encontrando outra saída
pelos asfaltos feridos.

Como te anseio,
só, na hora da demora,
no que podemos alcançar
pela nossa vida fora,
como sentido de amar.

Como te anseio,
no respirar que preciso
pelo amparo entre nós,
no momento indeciso
junto ao som da tua voz.

Como te anseio,
no carinho e afago,
no encanto dum sorriso,
nas fotos que de ti trago
e no ganho do meu juízo.

Como te anseio,
nas palavras que proferes,
no tempo que intento,
tudo em que interferes
no ouvires meu lamento.

Como te anseio,
na semente germinada,
no olhar tão persistente,
na guerra apaziguada,
no caminharmos em frente.

Como te anseio,
neste ter-te junto a mim
e no beijo que recebo,
por tu seres sempre assim
e por todo teu enlevo.

Como te anseio,
na vida, no sentimento,
no abraço que me deres,
entre travo e alimento,
no tempo que tu quiseres.

 
António MR Martins, in “Margem do Ser” (a publicar)

domingo, 11 de agosto de 2013

Joaquim Pessoa




POEMA SEXTO

 
Doce é o sacrifício dos frutos, fraterna
a luz dos pássaros. A terra canta, exibe agora
o esplendor dos vulcões, para acender na noite
o imenso candelabro do universo.

Ofereço a mim todas as vidas, todos os segredos
por detrás da aurora. Amo todo o silêncio,
toda a dor redonda de cada um dos dias.

O que vejo, o que sinto, é a respiração
das palavras, hálito doloroso das colinas da tarde,
a curva da fala que se demora na ternura das mãos
e de onde tomba o oiro dos relâmpagos ou
se debruça a luz fria das primeiras horas.

Escreve-me como se ainda me amasses.
E eu guardarei o fogo. Dar-te-ei o sol. Talharei o sílex
para o coração azul do pássaro. E o tecido dos beijos
para vestir a pele das coisas mais agrestes.

Dividirei com a tua boca o feroz vinho da juventude
e cantarei contigo todos os salmos da paixão.
Por fim, esperar-te-ei no rio, junto à margem. Onde
as romãzeiras se despedem do verão.

E onde, agonizante, caminha para o sol
o animal que aos poucos morre de tristeza.

 
Joaquim Pessoa, in “Guardar o Fogo”, página 32, Edições Esgotadas, 2013.     

Ilimitadas sensações




Nessa pele, remendada de carícias amorfas, onde se enrugam as esperas consumadas. Nesse condimento revelado pelas intenções omitidas em ânsias de tanta espera. Nesse subtil corpo decorado pelo rubor de uma qualquer cereja, estendida na plenitude de toda a contemplação. Nesses poros sequiosos, onde manobram as glândulas de toda a exposta sensualidade em metamorfoses de movimentos inesperados, mas determinantes. Nesse perjúrio revoltante cintila a luz de todo o fragor, regurgitado pela adjacente exteriorização. Nesse todo clamam as fontes das águas onde prima a clarificação do teu ser. Torna-se inebriante esse expoente sem mácula e o sagaz efeito de tanto desejo. Há prazeres que as palavras não conseguem justificar, nem sequer enunciar.

António MR Martins, in “De Soslaio” (a publicar).

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Perde-se o homem, não o valor


Uma simples homenagem publicada neste blogue, no dia seguinte à sua morte. Já passaram quatro anos...

Até lá!... RAUL SOLNADO.


Perde-se o homem
Não o valor
Fica o autor
Por ele meu clamor.


Perde-se o homem
Não o valor
Fica o humanista
O poeta, o cantor.

Perde-se o homem
Não o valor
Fica o companheiro
O sagaz apresentador.

Perde-se o homem
Não o valor
Fica a sua razão
De simples sofredor.

Perde-se o homem
Não o valor
Fica a sua imensidão
O sorriso libertador.

Perde-se o homem
Não o valor
Fica o seu pundonor
O ser lutador.

Perde-se o homem
Não o valor
Fica o belo azul
A sua grata cor.

Perde-se o homem
Não o valor
Fica a sua criatividade…
O ser inventor.

Perde-se o homem
Não o valor
Fica a recordação
Do seu bom humor.

Perde-se o homem
Não o valor
Fica-nos na alma
O seu eterno amor!...

 
A minha singela homenagem ao grande homem da cultura portuguesa, meu consócio azul de Belém, que deixou a vivência terrena a 8 de Agosto de 2009.

Até lá!

2009.08.09

António MR Martins

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Alvaro Giesta




terra e água em eterna aliança
mulher – irmã mulher – amante
mulher – semente

seio onde se acolhe
e adormece
em segurança

terra
é pai e mãe ao mesmo tempo
e sede de ser

e a água que a fecunda
o sémen que sacia a fome
e faz crescer

Alvaro Giesta, in “Meditações sobre a palavra”, um tributo a Ramos Rosa, o poeta do presente absoluto, página 43, edições Temas Originais, Coimbra, 2012.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Viriato III - Entre a eloquência e a razão




Perante a exposição de coisas de tanto valor
na festa do seu casamento
Viriato decidiu questionar Astolpas por tal situação

Tudo lhe parecia tão diferente do que ele desejava
não fazendo qualquer sentido tamanha demonstração
o ar livre e os solos do terreno montanhoso
eram o seu habitat preferido
e onde se sentia plenamente em casa
não necessitando de tanta sórdida exultação
perante tão grandiosa riqueza fútil e desconexa

Astolpas apresentou-lhe as suas ideias
confrontando-o com a eloquência de tudo o que ali se via
e a razão real do valor exposto na circunstância

Entre comparações pelas atitudes dos romanos
e  a valorização dos conceitos usados pelos Lusitanos
na simplicidade de toda a exposição
e no seu invulgar preceito de grandes dotes oratórios
influenciou o guerreiro lusitano
que detendo-se nas suas palavras
sem sentidos supérfluos
o relativizaram para uma sublime recordação
de toda aquela envolvência
e do seu dissertar aperfeiçoado pela virtude
para um desígnio de ouvinte tão privilegiado…

 
António MR Martins

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Vítor Cintra




24.

 
Sobejam medos
nas memórias do tempo.

Enredos de amores desperdiçados,
nas veredas dos desencontros,
povoam as margens do sonho.

Não há cânones no desgosto,
somente dor.
Não há dogmas no arrependimento,
somente perda.

Ainda que difusa,
a constância da tua imagem permanece.
Invariavelmente só.

 
Vítor Cintra, in “Nas brumas da magia”, página 36, edições Temas Originais, Coimbra 2011.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Balem pelos balidos se valem dos validos


Imagem da net, por Rouxinol de Pomares, em:



Balem
As causas sem compromisso
E as redes conspiradoras
No anseio
De tudo aquilo que devoram

Balem
Os descontentes
Manifestando contratempos
Nódoas de tantos lamentos
Pelo murchar dum cerne viçoso

Um balir inconsequente
Por tudo o que ficou pendente
E pelo nada conquistado

Um suprir sempre evidente
Que cortou tanta corrente
Levando ao descambado

Balidos
Sofridos e soltos
Como soluços arrefecidos
Entre o ar que tanto engasga
Num respirar profundo
Que a pele a muitos rasga
Neste sobressaltado mundo

De que valem esses gritos
Essa luta molengona
Que surjam outros balidos
Limpem estes com acetona

Soam as vozes
De todos os carneiros
E as ovelhas silenciam-se
Obedecendo

 
António MR Martins