sábado, 28 de fevereiro de 2015

Sandra Fonseca





Lapidar o dia

Eu, e por mim
Jamais esquecia
O cheiro dos jasmins
Na caligrafia dos dias
Meu jeito de espantar
A desesperança
Que me ofusca de luz matinal
E insiste em se camuflar
De sol brilhante

Se quando piso
De pés descalços
O mármore frio
Da realidade
Eu sinto
Que preciso
Levar uma promessa
Bruta, como a palavra
Para a oficina dos sonhos
E lapidá-la em diamante

Sandra Fonseca, in “Dez violinos marinhos e uma guitarra de sal”, página 21, Arquimedes Edições, Colecção Museu Nacional da Poesia, Belo Horizonte – Minas Gerais – Brasil, 2014.

Força de viver


Imagem da net, em: www.brunosathler.blogspot.com



Por singelo debalde ilusório
na ousada espera concedida,
ante efémero fluxo transitório
que trouxe outro enlevo à vida.

Realce espontâneo inolvidável
no âmbito da segurança lógica,
integrando origem questionável
num acervo de sensatez ilógica.

Peremptório facto extrapolado,
contrato, decreto, com valor selado,
frutuoso percurso por fortalecer.

Experimentado rigor competente
relevado pelo sentido da gente,
que, com toda a força, só quer viver!

António MR Martins

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Afonso Duarte





EPIGRAMA

Há só mar no meu País.
Não há terra que dê pão:
Mata-me de fome
A doce ilusão
De frutos como o sol.

Uma onda, outra onda,
O ritmo das ondas me embalou.
Há só mar no meu País:
E é ele quem diz.
É ele quem sou.

Afonso Duarte (1884-1958), in “Obras Completas de Afonso Duarte, I – Obra poética”, página 129, Plátano Editora, Junho de 1974.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Manuela Fonseca





NÃO ME MATES SÓ POR ME MATAR

Não me mates só por me matar
Mata-me a fome
E arrecada o pão
Que não te atormenta
Para me matares amanhã
De novo.

Mata-me de olhares de amor
Não com o brilho da piedade
Não me mates de pena
Mata-me em gestos de carinho
Com afagos
Sem balas perdidas
Certeiras

Mata-me a sede
Com o copo que te enfeita as manhãs
De todos os dias
Não me mates a vergonha
De ser filho do outro lado da vida
Mata-me o silêncio
Que me escorre nas faces
Em dias de chuva
Onde purifico o corpo

Os mesmos dias em que não purificas a alma
Por não lhe conheceres a esquina do seu grito…

Não me mates só por me matar

Mata-me o princípio de ti
Que termina no resto de mim…

Depois
Se te quiseres matar
Mata-te!

Mas deixa-me ficar
Continuar neste meu sóbrio desejo
De lutar!

Manuela Fonseca, in “Poesia sem remetente”, páginas 54 e 55, edições Temas Originais, 2010.

Teu sorriso


 


O teu olhar indicou-me o caminho
dos sentidos mais ricos e profundos,
em emoções perfumadas de carinho
entre gestos sensuais e moribundos.

Partilha intensa sem haver demora
em todos os dias do nosso respirar,
denso complemento a qualquer hora
na plena envolvência do simples amar.

Ritual contínuo, sede de vida,
afagos prementes, apelo à guarida,
eternidade que julgamos abraçar.

Imagens diluídas entre as sombras,
pela paz que emana das brancas pombas
e no teu sorrir, impossível de igualar.

António MR Martins

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Sophia de Mello Breyner Andresen





AS FONTES

Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser, vivo e total,
À agitação do mundo do irreal,
E calma subirei até às fontes.

Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor.

Irei beber a luz e o amanhecer,
Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um voo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser.

Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), in “ Poesia” (edição definitiva), página 54, edições Caminho, Novembro de 2003.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Alvaro Giesta





[Tange teu corpo nu colado ao meu]

Tange teu corpo nu colado ao meu
em horizontal planície ondulante e verde,
onde espigam os sonhos
respirando a vida em cantos libertos
das algemas

Voam os pássaros livres
levando nos nossos olhares húmidos
réstias de sombras de medo
sangrento e mudo;

o vento sopra sobre o nosso deserto,
desflora cabeleiras
estremece árvores de ternura
solta a liberdade dos pulsos algemados;

o tempo ressuscita o lume e o sol!

Parai
e dizei-me o que há de mais puro
no coração ávido que anseia a água da vida
e o ser,
senão a poesia

Alvaro Giesta, in “Um Arbusto no Olhar”, página 81, edições Calçada das Letras, Outubro de 2014.

 

Sentidos perdidos


Imagem da net, em: www.panizzon.com.br



Larguei emoções adormecidas
e vou embrenhar no teu fundo,
desbravar carreiras escondidas
nas profundezas do teu mundo,

entrelaçar caules e frutos
em enxertos reais e profundos,
esgrimir-me em gestos brutos
e suaves beijos vagabundos.

Hoje despertarei a loucura
pela hirta nudez despoletada,
afagando ciente de ternura
essa via bem iluminada.

Vou agarrar, de qualquer forma,
teu ávido peito acalorado,
pelo abraço tenso sem ter norma
ao teu sensual vinhedo bordado.

António MR Martins

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Manuel António Pina






Luz

Talvez que noutro mundo, noutro livro,
tu não tenhas morrido
e talvez nesse livro não escrito
nem tu nem eu tenhamos existido

e tenham sido outros dois aqueles
que a morte separou e um deles
escreva agora isto como se
acordasse de um sonho que

um outro sonhasse (talvez eu),
e talvez então tu, eu, esta impressão
de estranhidão, de que tudo perdeu
de súbito existência e dimensão,

e peso, e se ausentou,
seja um sonho suspenso que sonhou
alguém que despertou a paira agora
como uma luz algures do lado de fora.

Manuel António Pina (1943-2012), in “Os Livros”, página 32, edições Assírio & Alvim, Novembro, 2003.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Maria do Rosário Loures





MARÉ BAIXA, MARÉ ALTA

Pessoas flutuam famintas no mar alto
como se fossem plantas em terra seca
o sol dorme
como se fosse uma criança.

Pessoas flutuam divertidas no mar alto
como se fossem ao baile de máscaras
o sol sorri
como se fosse uma criança.

Corpos de pessoas sem vida
estendidos na areia da maré baixa
o sol já não sorri
como se fosse uma criança

acordado promete
com a voz dos deuses
não adormecer
para mais ninguém

Maria do Rosário Loures, in “ Um sumário da minha vida no século passado”, página 44, edições Edium Editores, Outubro de 2010.

O mais belo poema


Imagem da net, em: www.imagensgratis.com.br



Quando te li,
a primeira vez,
foi em verso.

Percorri teu corpo
com o sentido olhar da palavra
e com ela saboreei
os mais apaladados pretextos.

Carente do desejo de ler-te,
em definitivo,
te vislumbrei, interiorizando-te,
da cabeça aos pés.

Depois…
te beijei,
intensamente,
tocando quase todos os teus caminhos.

Então,
te senti,
finalmente,
poema!...

António MR Martins

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

António Gedeão






Impressão digital

Os meus olhos são uns olhos,
E é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns

Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.

Nas ruas ou nas estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros, gnomos e fadas
num halo resplandecente.

Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moínhos
D. Quixote vê gigantes.

Vê moínhos? São moínhos.
Vê gigantes? São gigantes.

António Gedeão (1906-1997), in “Poemas escolhidos” (antologia organizada pelo autor), páginas 9 e 10, edições João Sá da Costa, Ld.ª (1996), na 8ª. Edição, Lisboa, Março de 2002.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Conceição Bernardino, em 3 versões





Hei-de arrancar as palavras com os dentes

Hei-de arrancar as palavras com os dentes
espremê-las, uma a uma com a saliva que me
resta
hei-de suportá-las mesmo que me cortem a língua
e a sirvam aos cães pródigos da benevolência, a
ira

Saberei à mesma escrevê-las
nas flores de Maio, em pleno inverno,
antes do romper da frígida madrugada
em punhos feitos de mármore escarlate

Hei-de desenhar nos escarros desta liberdade
os nomes a carvão, onde Auschwitz calou os seus

Hei-de levantar a voz, engolir a palavra em seco
e vomitá-la onde a surdez cala, corrupta

Conceição Bernardino

 
Onde as minhas mãos se arrastam

A noite cerca-nos, devora-nos,
Sem que saibamos o nome um do outro.
Procuro o rosto com os dedos,
Como o pólen que respiro da tua boca.

Já não sei ouvir o mar sem encostar
O ouvido ao teu peito,
Nem olhar o céu sem que me emprestes
Os teus olhos dormentes.

Resta-me o sujo dos lençóis
Onde as minhas mãos se arrastam
Dentro desta loucura precoce.

Carlos Val

 
Onde a luz e as sombras se encontram

Tropecei nos silêncios de pedras calcinadas
defronte a uma esquina de vidro, ao longe a
coluna dorsal do mar dobrava-se em delicadas
vértebras, lambendo as sequelas enraizadas de
salitre na “Vesperata” onde a luz e as sombras se
encontram.
Quis sentir-lhes o sabor…saboreei o primeiro trago
na inocência – a ilusão – o segundo o despotismo
enfadava a razão, o terceiro trago servia para
sustentar qualquer condição.
A vida é tão estúpida que estupidez alguma a
reconhece quando no lamaçal a morte se finge
acordada.

Mathilde Gonzalez  

In “identidades”, página 10 (Conceição Bernardino), página 75 (Carlos Val) e página 115 (Mathilde Gonzalez), edições Lavra… boletim de poesia, Vila Nova de Gaia, 2013.

Mil vozes





soam nas esquinas dos prédios
pelas rachas de suas paredes
que se perdem no tempo

e entre as portas de todas as saídas

ecoam nos penhascos do mundo
e nos vales das terras prometidas
no mais longínquo horizonte
invadindo os tempos de tanta espera
num constante ruído
prenhe de tamanha surdez

as vozes extravasam
os espaços demarcados
numa sonoridade
que potencia denegridos enredos
com a faculdade
de nos atormentar o íntimo
ante tanto desesperante silêncio

António MR Martins

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Edgardo Xavier





Mundo

Retiro dos teus olhos
o mundo que me cabe
e vivo-o para
no meu corpo
ser um pedaço de ti.

Em nós se iguala a sede
e se extremam as vontades.

Possuis-me sempre que te entregas
e eu sou em ti
a força da maré.

Edgardo Xavier,  in “Azul como o silêncio”, página 12, Chiado Editora, Maio de 2014.

nuances de sedução


Imagem da net, em: femininoparalelo.zip.net


neste nascente
neste entardecer
nesta foz

há um sentido comum
que emerge
entre cada pétala moldada
à flor do teu encanto

uma fragrância única
solidez substancial
descompondo-se suavemente
ao respirar apaladado
de cada novo dia

há um punhado de sabores de ti
que esvoaça sua limpidez
no íntimo do meu ser

António MR Martins