sábado, 16 de fevereiro de 2019

Sonora apoteose


Imagem da net.




Tenho a voz enrouquecida
por entre os meandros do silêncio

todos os sons inquietantes
sintetizam a parcialidade
audível de todas as formas polarizadas

nem o altifalante sustenta
os decibéis aleatórios à conformação

a carapaça do ruído jaz
na ambígua insustentabilidade
de toda a sonoridade ambiental
na mais digna cidade de todas as falas.


António MR Martins

Lília Tavares


Lília Tavares, imagem da net.




Guardadora de ventos

Cheguei a casa quando anoitecia.
Ainda quente, o vento empurrava-me o vestido.
Por um instante senti-me ave
levada por brisas, plumas e enigmas.
A aragem entontecia-me de prazer.
Queria ficar nos braços daquele vento.
Imaginei que o anoitecer me pertencia.
De pé, senti o teu corpo.
O meu, aberto e solto, deixou-se ir.
Sou apenas uma guardadora de ventos.

Lília Tavares, in “Nomes da Noite”, página 50, Colecção “A Água e a Sede”, edições Modocromia, Janeiro, 2019.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Arnaldo Saldanha Abreu


Arnaldo Saldanha Abreu, imagem da net.




Transparências

Em cima da mesa uma ampola de sangue.
A criança fervilha de curiosidade para agarrá-la.
Uma luz branca incide no tampo envernizado.
O reflexo percorre a transparência do pai estilhaçando
as delicadas extremidades de vidro.
O homem verte vinho para um jarro e tinge de tintura a água.
A mulher abre um frasco de amor e escurece de vermelho
fatias de pão.
As filhas têm tranças de cabelo azeitona e de trigo dourado.
À mesa todos se riem por ele ter a boca pintada de ameixa.

Na manhã seguinte quebrou a ampulheta e destruiu
o mecanismo de conta-gotas.

O reflexo imobilizou-se no rapaz que cresceu
e que vê pelas mãos à transparência.

Arnaldo Saldanha Abreu, in “Transparências e outros anexos”, página 7, edição de autor Euedito, 2014.

sábado, 9 de fevereiro de 2019

as pedras da vida


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na terra a pedra solta que pontapeio
desirmanando-a de tantas outras situadas em seu redor
quantas vezes terá sido pontapeada 
e deslocada do seu poiso
tal como todas as outras.

no intenso percorrer do caminho uma pedra maior
em que me sento
num prazer inigualável de descanso do corpo.

outros corpos
através dos tempos
ali terão descansado no desgaste inabalável da vida
desgastando a pedra em delicado polimento.

a vida é o desígnio dos corpos
que percorrem os caminhos mais díspares
e distantes
por onde tantas pedras bloquearam e desbloquearam
o simples devaneio de biliões de corpos
e todos os seus sentidos.

António MR Martins

Inez Andrade Paes


Inez Andrade Paes, imagem da net.




[há pássaros no fundo deste oceano]

há pássaros no fundo deste oceano.
e olhares exangues ao lado das conchas

saberás tu cantar como eles?
ou neste mar o sal não cura?

tantas feridas abertas e cruas
sofrem como lapas à deriva
roçando no chão as línguas abertas
à margem de todos os rostos sentidos
e os olhares dispersos no meio de tudo
aquilo que é mar aquilo que é fundo

V.10.16a

Inez Andrade Paes, in “À Margem de Todos os Rostos”, página 29, edições Coisas de Ler, colecção de poesia Clepsydra, 2017.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Na profundeza de todas as águas


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No fundo das águas
o mistério
do equilíbrio do mundo.

Lá bem no fundo
há um valioso segredo
que traz as ondas a acariciarem
cada grão da areia de cada areal.

Para além
de toda a insossa penumbra
há um salgado segredo
em cada mar
em cada oceano.

Na profundeza de todas as águas
a voz que alimenta
o sequioso sentir do planeta
quiçá do universo.

António MR Martins

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Gisela Gracias Ramos Rosa


Gisela Gracias Ramos Rosa, imagem da net.




A memória

A memória não é uma câmara de munições perdidas
ou uma matriz de caracteres catalogados por
exclusão ou defeito ou pela soma destes
a memória é um processo e um espelho do
esquecimento
quando os planos se sucedem em áspero e espesso
desgosto
mas é também focagem suave nas secções em que a
consciência
se abriu atravessando o tempo pleno e duradouro.
A memória é uma pedra esculpida em silêncio.

Gisela Gracias Ramos Rosa, in “A pedra e o corpo”, página 78, edições Poética Edições, Novembro de 2018.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Infrequências


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“E, todas as entidades que ignoro
sentem que as amo,
que aprecio a inutilidade dos seus olhos,”

João Rasteiro,
in “A Auscultação da Triangularidade”

“cego não é
aquele que não vê,
é todo aqueloutro
que não quer ver!...”

olhares amorfos, brutalmente amorfos,
não aprofundam a evidência
da singularidade observadora
numa amplitude consciencial.

um dia
a raiz do mundo
voltará a ser raiz,
de qual quer modo.

há um apetrecho inseguro
quando se olha de soslaio
ou se transmite um cabisbaixo
amedrontado.

o trânsito humano
descambará num dia maior
e todos os sinais luminosos
passarão a ser
meros estorvos paisagísticos.

mas nesse dia
continuará
a paisagem a existir?

ou a sua raiz secará
de inexorável modo?!...

António MR Martins

Teresa Teixeira


Teresa Teixeira, imagem da net.




Poema subcutâneo

Por baixo da minha pele
há caminhos insuspeitos
vias sacras consentidas
labirintos construídos
a cinzel.

Por baixo da minha pele
há rios que me repartem
em mil pedacinhos d’alma
marés vivas, margens calmas
barcos pedaços de noz
ventos que doem na voz
das sereias que ouso ser
nas veias de me não ser.

Imprevisível mulher
que em noites de lua cheia
se transforma em mim profunda
e rasga em dor fina e funda
o espartilho de seda
que é minha pele labareda
secando rios adentro
queimando fios por dentro…

Por baixo da minha pele
tenho jardins proibidos
onde cultivo as chuvas
mais secretas.

Sob o véu que faço delas
tenho um jardim permitido
onde semeio as dúvidas
dos poetas:

“Por baixo da nossa pele…
…somos o céu ou o inferno?...”

-

Por baixo da minha pele…
sou as linhas de um caderno.

Teresa Teixeira, in “Labiríntimos”, páginas 10 e 11, edições Lua de Marfim, Setembro de 2015.