segunda-feira, 3 de março de 2014

Arnaldo Saldanha Abreu





A cidade

Fazíamos arcos com ramos de eucalipto
esticados por finas cordas de nylon que roubávamos
dos fios-de-prumo.
Os cabouqueiros abriam a pulso valas que enchiam
com cascalho, cimento e areia grossa.
As casas proliferavam semana após semana.
O povoado crescia – anos mais tarde a capital transbordou
e a nossa terra aumentou-se de casas e de pessoas
e ganhou o estatuto de cidade desordenada.
Havia comércio a cada esquina e a vida acontecia muito depressa,
os homens sopravam o pó dos fatos
e as senhoras sujavam os saltos das botas de cano alto
na lama das ruas sem alcatrão.
Os cabouqueiros passaram a guiar máquinas que esventravam
a terra para se alimentarem das raízes dos pinheiros
e dos eucaliptos
e os lavradores plantavam guindastes e enxertavam-se
no cimo dos andaimes.

Foi há muito tempo.
Mas de um tempo mais antigo são as noites em que tirávamos
prumadas às estrelas
e nos dias resplandecentes de sol
tu equilibravas-te num curto vestido de renda
e em troca de um beijo
eu deixava-te desfilar com o meu chapéu de palha.

Arnaldo Saldanha Abreu, in “Transparências e outros anexos”, página 8, edições Euedito, 2014.  

1 comentário:

ASABREU disse...

Caro amigo, António MR Martins

Muito me honra estar aqui neste local sublime de poesia e de silêncio.

Obrigado.

Um grande abraço,

ASAbreu