quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Desencontros nas veredas


Imagem da net.




Já não se assume a mágoa
ou qualquer sentir profundo
onde emergem os sentimentos.
Esta turbulência abala as normas,
mesmo as mais poderosas
sem permitir indecisões.

Tudo se encontra feito
pela desdita comprometida
com a bala da frustração.
Os tópicos se omitiram,
os versos ficaram contidos
e a palavra já não seduz.

Este chão do desconforto
não desanuvia o clamor,
que urge então gritar!
Mas o grito não é uníssono
remetendo-se ao silêncio
sem ninguém o escutar.

As bandeiras já não desfraldam,
os hinos não são tocados
e as vozes reduzem-se à mudez.
Uma hecatombe acontece
na encruzilhada dos caminhos
onde explode a manifestação.

António MR Martins

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Pelo breve estreito da amizade



Imagem da net.





Significados bem diferentes
se obtêm neste caminho,
entre as marés da consciência.
Atingem-se registos maiores
e, geralmente, são aprovados
sem anseios contaminantes.

Outros valores aqui se invocam
nas perspicácias da resolução
alheios a colheitas medíocres,
sem palpites da sujeição,
por onde passam sentires poluídos
mas sem efeito valorativo.

É o emergir das sãs virtudes,
embora possam ser ténues e frágeis,
mas de incalculável valor humano
fluindo um estado diferente
e um sentir bem sorridente,
com espasmos de felicidade.

Haverão abraços pelo meio
e sorrisos mais amplos e abertos
neste alinhar tão sentimental.

Mas num qualquer tempo,
afinal,
tudo voltará ao princípio
e ao mesmo vil ritual.


António MR Martins

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Lília Tavares


Lília Tavares, imagem da net.






Guardadora de ventos

Cheguei a casa quando anoitecia.
Ainda quente, o vento empurrava-me o vestido.
Por um instante senti-me ave
levada por brisas, plumas e enigmas.
A aragem entontecia-me de prazer.
Queria ficar nos braços daquele vento.
Imaginei que o anoitecer me pertencia.
De pé, senti o teu corpo.
O meu, aberto e solto, deixou-se ir.
Sou apenas uma guardadora de ventos.

Lília Tavares, in “ Nomes da Noite”, página 50, Colecção A Água e a Sede, II Volume, edições Modocromia, Janeiro, 2019.  

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Renascer na simplicidade de viver


Capa  do livro "Juízos na noite",
Colecção Entre versos, coordenada por Maria Antonieta Oliveira,
uma publicação In-Finita.





Há uma frieza
espontânea,
que antecede
a estática conformação,
num apelo indelével
no começo de cada verso.

Estreita
o muro que nos separa,
na nossa fragilidade
do ser.

Não mais seremos como fomos,
e o futuro
será a surpresa
de cada amanhecer.


António MR Martins
(in “Juízos na noite”, página 16, edição In-Finita, Setembro 2019)

Alberto Cuddel


Alberto Cuddel, imagem da net.





Ilusão?

Reconheço-me estupefacto
Nas águas que me escorrem pelas mãos,
Lágrimas vertidas, areias soltas nos pés,
Neblinas de ideias de homens pequenos,
E madrugadas nascidas do ventre das mães,
Escorro-me onde o vento desfaz as tempestades
Na calma dos corpos… tão belos.

Vejo os horizontes, e os desertos
O voo libertino das aves, asas aladas,
Na palma das minhas mãos escorrem sonhos
Que morrem na rebentação das marés
Por entre luares de Abril, onde navega o coração
Na paisagem gretada pelo sol dos que vivem.
Forço-me navegante no azul do teu olhar
Onde me perco na esperança de me encontrar
O meu corpo sangra, inunda os campos

Desvirginando a terra e as ilusões!


Alberto Cuddel, in “ O silêncio que a noite traz”, página 49, Orquídea Edições, 2018.

sábado, 5 de outubro de 2019

José Tolentino Mendonça


José Tolentino Mendonça, imagem da net.



A casa onde às vezes regresso

A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes,estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos

Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo

Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração

José Tolentino Mendonça, in "A noite abre meus olhos”, edições Assírio & Alvim.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

João Paulo Esteves da Silva


João Paulo Esteves da Silva, imagem da net.





9

Estou vazio, nada a fazer, resta-me só ficar calado no canto
Rezar que algo venha em visita com o descanso de coisas rápidas

Vou lento contra as superfícies mais baças, chego atrasado, sem ritmo
Vivo na fracção de segundo depois de cada momento

Dou imensos erros de ortografia, os dedos não acertam nas letras
Havia uma criança que se queria matar e não sabia

Acelerava pela encosta abaixo até perder a pedalada e tudo se apagar
Vou contra o escuro que se fez nos olhos dela

Vê se me ligas à corrente, que possa acordar longe do bloco de trevas
Separo o espaço em duas metades, há uma prateleira branca

As cores passam por cima e por baixo, eléctricos, comboios
Está muito escuro dentro do meio, o branco apaga-se por dentro

Saio, atravesso as ruas, ainda vazio, chove dentro dos bolsos
Com a noite, com o acender das luzes, quebra-se um pouco a vontade

De animal encurralado a empurrar a criança encosta abaixo
Formam-se poças extensas na calçada, fico a olhar os brilhos

Sinto afinar-se a linha divisória, afasta-se, apresso o passo, quase acerto
No que se vai dando, o chão sujo e molhado aparece-me belo

Sigo o inverno, a primavera fica bem na fotografia das férias
Acordar vivo no quarto dos avós no dia mais luminoso da memória

Sem medo de molhar os pés, sinto a areia a cair do alto
Pela espinha abaixo, vou-me sentar na beira do passeio e agradecer


João Paulo Esteves da Silva, in “ Vertem-se Bíblias em Quimbundo”, s/n.º de página, edições Miasoave, 2017.