quinta-feira, 27 de junho de 2019

Samarone Lima


Samarone Lima, imagem da net.





O CAFÉ DO DESTINO


para Zeneuda

Nunca esquecerei o dia
em que minha avó fechou a porta da casa
para ir à missa.

Eu estava em seus braços, creio
e ela percebeu
a mancha de café
na ponta do vestido.

Minha avó abriu a porta
me deixou quieto num canto
e lavou a ponta do vestido
que voltou a ficar totalmente branco
(ou azul, não lembro).

Minha avó ligou o ferro
para passar na ponta do vestido
quando levou o choque
que lhe quebrou o braço.

Não teve missa, não teve mais nada.

Minha avó foi minha mãe
durante um ano.

Até que o café pingou
na ponta do seu vestido
na ponta do destino
e fui viver outra vida.

Samarone Lima, in “O Aquário Desenterrado”, páginas 40 e 41, edições Confraria do Vento, Rio de Janeiro, 2013.
  

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Relâmpagos do Oriente


Foto tirada a partir da Taipa (Macau), por António Martins.




Observo o horizonte
que se metamorfoseia numa rapidez
não memorizável
e rastejo o meu olhar plúmbeo
digitalizado pelas nuvens
bens escuras.

Num ápice já a água tomba a cântaros
fornecendo às vias alcatroadas
piscinas e poças de circunstância
depois um raio luminoso
no escaparate de um céu bem nublado.
Bastam alguns segundos mais
para um estrondo amedrontador
fustigar nossos tímpanos.

Esta tela alterada a cada segundo
continua a empolgar
todo o meio envolvente.
Mais curto-circuitos da natureza
e a reboque o ruído de altos decibéis
de cada trovão que lhes sucede.

Passam breves minutos
e o sol descobre-se
de entre todas as nuvens passageiras.
Retorna a temperatura quente
e toda a humidade subjacente.

É surpreendente
toda esta transformação!...

António MR Martins

segunda-feira, 10 de junho de 2019

A candeia das remotas memórias


Imagem da net.




Da candeia se apagam
as rédeas da visibilidade
e as gotas de petróleo secam seu desvario
numa acendalha descabida
onde outrora o azeite fazia sua escalada

Da candeia se desfocam
as imagens ternas e afagantes
entre o denodo persistente do frio
e o pavio da concordância
que repele todas as máculas da tristeza breve

Da candeia flamejante
pousada no desvario da memória
se ungem os sentidos
através da tangente da sobrevivência
ante a espera do porvir

Da candeia irradiante
o calor único e a luz ténue
metamorfoseiam
a palidez incandescente
de um passado nunca esquecido

Da candeia velhinha
sobram tantos pedaços de história
na simplicidade do seu manusear
entre as esferas da solidão
e a negrura de tantas noites

Pela candeia sem luz
cresce a escuridão do ocaso
na presença de tantos anseios
que aguardam ansiosamente
a claridade de um novo dia

António MR Martins

terça-feira, 4 de junho de 2019

Rua das pedras esquecidas


Imagem da net.





Pisei o chão
de pedras calcetadas da tua rua
vezes sem fim.
Nem meus passos por lá se deslumbraram
e sequer cheguei ao destino procurado.

Toda a sinalética visível
me fez voltar para trás
sempre que por lá passei.

Pisei essas pedras
tantas vezes
que nem sei quantas foram.

Todas as memórias
se foram dissipando
ao longo de tanta passagem multiplicada.

Nunca mais fui à tua rua
e o labirinto desse caminho
jamais o solucionei.

Ainda hoje duvido desse teu endereço.

António MR Martins 

sábado, 1 de junho de 2019

Fernanda Dias


Fernanda Dias, imagem da net.





[Em noites destas os poetas não dormem]

Em noites destas os poetas não dormem
escutam a chuva tamborilando nos terraços
arremessam palavras aos muros da solidão
trazidas pelo vento das idades
a noite vocifera os anais de outras eras
as árvores escrevem como cálamos embruxados

O tempo, o poeta mais arguto
também escreve com bolor nos muros velhos
nada disto precisa ser dito
qualquer fio de incenso escreve versos
o rumor da chuva canta um poema eterno

Fernanda Dias, in “O Mapa Esquivo + III - Ao canto da lua lesta”, página 91, edições Livros do Oriente, Colecção Extratextos, Abril de 2016.