segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Não sei

 

Imagem na net.


Sacam-me as vozes
atrozes, não sei!...
Prendem-me os braços
abraços, não sei!...
Cobrem-me a boca
sufoca, não sei!...
Atam-me as pernas
eternas, não sei!...
 
Querem voltar isto pra trás
furtando felicidade,
essa sentença não se faz
e eu quero liberdade!
 
Calam-me a palavra
lavra, não sei!...
Tapam-me os olhos
sobrolhos, não sei!...
Apertam-me a cabeça
aconteça, não sei!...
Param-me o cansaço
regaço, não sei!...
 
Não sei, não sei, não sei…
Só sei, que não sei!...
 
 
António MR Martins

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Alvaro Giesta

Capa do livro "Alquimia do Verbo" dois ciclos para um poema, 
de Alvaro Giesta, Calçada das Letras, Agosto 2021


A linguagem de um poeta apagado
 
Já não tenho pernas
para acompanhar as palavras apressadas
que esquivas correm à minha frente – indo devagar
consigo enganá-las no seu correr como o cágado
fez à lebre. Quando planeio escrever um poema
e me fogem as palavras, digo-lhes que não preciso
que elas gostem de mim para as escrever – só assim
me entendem; depois
estendem-me um tapete de relva
até à entrada da casa, e convidam-me a entrar –
assim já me sinto alguém; então
 
como Caeiro ouso ser o descobridor da natureza
ou o argonauta das sensações verdadeiras. Trago comigo
em dias de sol o universo cravado no  peito
e à noite, quando as sombras me entram pela casa
adentro, solto as palavras todas guardadas neste bolso
durante o dia, e a coragem em revolta nesta mão
que as semeia num bloco em branco para as fazer
de novo renascer em dia de primavera.
 
 
Alvaro Giesta, in “ Alquimia do Verbo  dois ciclos para um poema “, página 43, edições Calçada das Letras, Agosto 2021.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

flor de lótus

Foto de António Martins, em Macau.

 

emerges das águas mansas
numa delicadeza infinita
e no oriente das memórias
te sentes idolatrada
entendo em absoluto
pois conheci-te em Macau
 
 
António MR Martins
 
“in” livro “Flor das memórias perdidas”, a publicar.

domingo, 21 de novembro de 2021

rosa

Foto de António Martins.


há uma rosa num cheiro
como aperto que sufoca
êxtase de um sentimento
em espinhos de descoberta
por vezes nada mais resta
apenas um suspiro
 
 
António MR Martins

“in” livro “Flor das memórias perdidas”, a publicar.

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Descaminho

 

Imagem na net.


Folgam as costas da memória
num preso sentido das coisas
como num amanhar indecente
pelo proveito desprotegido
sem ter colheitas abonatórias.

 
Gritam frases irrelevantes
aos ventos de tanta discórdia
usurpando os mais sensíveis
na sua carência abundante,
pelas coisas insignificantes
das meras comadres em conflito.
 
Para onde querem seguir?
Depois dos tempos temerosos
duma quimera agoniante
e imensamente redutora,
que a pouco e pouco
já íamos esquecendo.
 
Depois das promessas queridas,
mesmo de pequeno teor,
tudo colide na negação
neste caminho tumultuoso,
que nos quer retirar o sonho
de fugirmos à estagnação.
 
 
António MR Martins

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Na natureza daquele carvalho

 

Carvalho-negral. Imagem na net.


Há um bugalho
separado das extremidades
de um ramo desertor
de toda a sua companhia
e de um inolvidável tronco
expressivo, saliente e hirto.
 
Outros bugalhos se plantam
nas pontas esquecidas do preâmbulo
daquele conjunto proeminente
plantado naquele solo
deixado ao livre-arbítrio
onde as silvas se amontoam
e sobem pelo seu expressivo tronco
que naquele ponto se esconde
das suas carências ilimitadas.
 
Um par de outros bugalhos
serve de apoio
à sua inconformação
como porta-estandarte
da sua peculiar evidência.
 
Na fusão de toda aquela imagem
ofusca-se a nitidez
da sua serenidade
e a omissão da limpeza humana
que fez derramar
o seu habitual conceito
de potência inabalável.
 
 
António MR Martins

domingo, 17 de outubro de 2021

Tempo de um pensamento

Imagem na net.

 

No lado exterior do tempo
as horas não são contadas
ou passam despercebidas
pelo tempo passado sem tempo.
 
Naquele lugar do lado de fora
os segundos de cada minuto
são mesquinhos salteadores
ultrajando cada batida do seu ponteiro
num inconsequente caminhar
pelo balanço de cada premeditado sentido.
 
Quando regressamos ao tempo
de outro modo
e ao seu lado interior
quiçá mais sólido e verdadeiro
já tanto, e tanto, acontecer aconteceu.
 
António MR Martins

terça-feira, 12 de outubro de 2021

José Félix

 

Capa do livro "Para um manual de Arqueologia",
de José Félix


ONDULAÇÃO
 
O coração aberto
de afectos e de nódulos
feitos de desencontros
nas fissuras da angústia
é tormento da sede
translúcida de espelhos.
Do outro lado me encontro
a prender as enxárcias
na amurada, da dor
que navega no mar
da cicatriz ferida
e sangra em cada porto
o coração perdido
no tropeção das vagas.
O corpo, mesmo assim
vem sempre à superfície.
 
José Félix, in “ Para um manual de arqueologia”, pág. 171, edições Temas Originais, 2021.

sábado, 25 de setembro de 2021

Susana Nunes

 

Capa do livro "Versos Sem Tempo", de Susana Nunes


QUANDO A TUA PELE ME BEIJA
 
Fico de sede em concha
posição embrionária e mágica
num enrolar de mim em caracol
e de plenitude cheia…
 
Por força da força da Natureza
e quando a tua pele me beija
sinto o lume do teu aproximar quente
no meu que se espraia e se estende
no exalar perfumado da tua madrugada
 
Desenrolo-me então lentamente
e de repente, a humidade do suor, cheira
faz-se maior e de nós se abeira
 
A palma da tua mão contra a costa da minha
aflora rainha e desliza no escorregar doce
da veia saliente que se entrega inteira
 
Fico no latejar latente
no sangue ardente que agita e serpenteia
o corpo que vibra na mente que se despenteia
 
Quando a tua pele me beija
e eu sinto que só pode ser a tua
todo o amor em nós já se desnorteia
fico de convexo teu
depositado no côncavo meu
e a concha abre e fecha agora em prosa nua
 
Na rua, o Sol a raiar desponta
a atravessar os orifícios da madeira
da corrida e branca persiana
 
Mergulhamo-nos nos cristalinos lençóis da nossa cama
no fechar dos olhos nos brilhantes sais
porque ambos sabemos ser a forma
de hoje e sempre nos olharmos muito mais
 
Susana Nunes, in “Versos Sem Tempo”, páginas 133 e 134, edição de Autor, apoio Autor Publica, 2021.     

sábado, 18 de setembro de 2021

E se os amigos cantam

 

Imagem na net.


Essas vozes ultrapassam
o simples sentido das coisas
e os sons tornam-se efémeros
perante a enormidade das razões.
 
Há sempre um apelo presente
em cada canção de amigo
e as luzes do esplendor
farão permanecer a dor da amizade.
 
Sim
porque a amizade também dói
ou poderá fazer doer
e isso tanto poderá acontecer
em dias soalheiros
como nos dias mais cinzentos
enfeitados com chuva.
 
 
António MR Martins

António Graça de Abreu

 

Capa do livro "Terra de Musgo e Alegria",
de António Graça de Abreu


EM SILÊNCIO
 
A lua desliza entre braçadas de nuvens,
em silêncio,
o sol nasce nos lábios da montanha,
em silêncio,
as nuvens dialogam com os pássaros,
em silêncio,
a borboleta pousa na flor,
em silêncio.
A alegria de te amar,
também em silêncio.
 
Gosto do silêncio
no grande vazio
e a correr dentro de mim.
 
Um dia,
quando me recolher
no aconchego dos braços de Deus,
levar-te-ei comigo
para o eterno silêncio.
 
António Graça de Abreu, in “Terra de Musgo e Alegria”, página 53, edições Nova Veja, 2005.     

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

A imensidão do amor

 

Imagem na net.


Amando tanto que nada supera tal
se enlevam sentidos agonizados,
que à saída de um imenso lamaçal
se superam conceitos avaliados.
 
Quando um grande amor não finda
desliza à tona dos rios-encanto,
numa  plenitude algo desavinda
pelo malogro suspeito do pranto.
 
Se o amor se inventa na hora
por vezes se empertiga na demora
desfalecendo e empolgando-se depois.
 
E nas traições descabidas tanto sofre
nos embates surpresa vindos de chofre
na epopeia sempre sentida a dois.
 
 
António MR Martins
 
 
Inspirado no poema de Jorge de Sena “Amo-te Muito, Meu Amor, e Tanto”, in “Poesia, Volume I”.

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Julieta Fatal – 25 de Novembro de 1922 / 18 de Março de 2012 –

 

Julieta Fatal


Ingenuidades
 
Ó meu amor, foi toda nua, toda,
que me tomaste, meu amor, tomaste!
Nua de tudo, meu amor, de tudo,
nua de afecto, meu amor, de afecto.
Eu só na rua, numa grande roda,
toda metida no ângulo recto,
serena e muda,
como convém a quem
por tudo se desnuda!
 
E assim tão nua, meu amor, tão nua!
Falei do mundo, meu amor, falei!
Do sangue todo que apodrece na rua,
da mágoa toda que entontece a rua,
da vida toda que escurece a rua,
e toda nua, meu amor, tão nua,
andei febril e a divagar sem lei!
 
Agora, amor, ó meu amor, agora,
não deites fora o que na rua dei!
 
Julieta Fatal, in “Ingénuo, Leve, Rasgado”, página 12.   


domingo, 5 de setembro de 2021

Laura DaSilva

 

´
Capa do livro "Névoa em Luz", de Laura DaSilva.


Dois poemas:
 
[Perto do céu]
 
Perto do céu
Dum firmamento
Que se escoa
Num azul e branco
Que magoa!
Escarpas esguias
Nas montanhas frias
Com o corpo que jaz.
E da Alma apenas
Fica um tormento:
De que lugar sou?!
 
12 Abril 2014
 
[Estar num refúgio]
 
Estar num refúgio
Onde a dor e a morte
Se entregam
Sentir que partir
É voar num além!
Esboçar raios de luz
Num estremecer
Assim ficar recolhida
Apenas esquecida
Sem nada saber
Dessa partida…
 
20 Abril 2014
 
 
Laura DaSilva, in “Névoa em Luz”, páginas 46 e 47, edições MinervaCoimbra, Outubro de 2019.

sábado, 4 de setembro de 2021

A tua seca pele

 

Imagem na net.




Conheço o sal da tua pele seca

depois que o estio se volveu inverno

da carne repousada em suor nocturno.

 

Jorge de Sena, in poema “Conheço o sal”

 
 
 
 
Conheço essa pele
onde o creme desidratante
esbanja toda a sua sagacidade
e proporciona
um arrepiante deslizar sedutor
no âmbito da sensualidade esquecida.
 
Há um trilho a percorrer
na digitalização
das tuas acomodadas impressões
que soltando-se
inebriará
em consonância
todas as tuas propriedades corporais.
 
Depois os beijos molhados
farão derreter todo o sal
que emanará de todos os teus poros
num autêntico desalinho alinhado
na perfeição.
 
 
António MR Martins

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Falando de um beijo

 

Imagem na net.


Solta-se um beijo
descabido de interesses
na amplitude das necessidades
impróprias
para quaisquer consumos.
 
O gesto inolvidável
retrata a sedução solitária
dessa caminhada
até à duplicidade da ambiência.
 
O rubor e a ardência
justificam todos os melodramas
e a pertinácia em labirinto
de cada obediência
será o contraste
de qualquer produto final.
 
A única diferença
será no modo de beijar
de cada diferente portador
desse impulsionador movimento.
 
Há sempre um beijo escondido
por entre cada um de nós.
 
 
António MR Martins

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Lita Lisboa

Hoje, é dia de fazer anos o nascimento da Lita Lisboa. 
Ela já nos deixou fisicamente, mas a memória conterá sempre a sua presença viva, em nós.
Deixo-vos um seu poema e o sentir profundo de imensas saudades!...

Lita e eu.


TELA VIVA

 

Não amordaço as mãos,

deixo que falem,

quando na tela branca

elas deslizam.

Solta-se a cor e o pincel,

é a força das artérias

que matizam.

 

Em murmúrios

apagam-se os abismos

arde o fogo

em alquimia azul,

na tela alva.

As imagens, da sombra são despidas.

Visto-as com auréolas de liberdade.

 

E de repente

contemplo o nascimento…

E é luz, é luar

é dia que amanhece

é jarra florida

é mar que encapela

é colina que floresce.

E do nada, fez-se sonho

e o sonho criou vida.

 

Missão cumprida !

 

Lita Lisboa, in “Crepúsculo”, página 34, edições Temas Originais, 2012.   


 

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

José Luís Peixoto

 

Capa do livro "Regresso a Casa",
de José Luís Peixoto.


Morreste-me
 
Como nos papéis onde calculavas a vida,
arrumados na tua gaveta ou esquecidos
sobre a mesa da cozinha,
esta conta:
 
as horas que passámos nas viagens
de regresso a casa são agora
menos do que as horas lidas no livro
onde descrevi essas viagens
de regresso a casa.
 
E, no entanto, aquele tempo
brilha ainda no interior
dos meus olhos
fechados.
 
E, no entanto, as palavras,
como árvores.
 
E, no entanto, aquele tempo.
 
E, no entanto, as palavras,
desde a raiz mais profunda,
levam o sangue da terra,
decantado, condensado,
até à folha mais alta
do último ramo.
 
José Luís Peixoto, in “Regresso a Casa”, página 105, edições Quetzal, Agosto de 2020.  

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Sentir intermédio

 

Imagem na net.


Soam baladas sentidas
noutros tempos cantadas
pelas míticas vozes da razão
por entre as frestas das janelas
adormecidas.
 
Brilham num ecoar taciturno
que despoleta a conjugação
do predicado de um verbo
indizível.
 
Logo surge o destempero
dos versos configurados
no cerne de cada garganta
que colide com o anseio das aves.
 
Num inequívoco ápice
o desespero lhes tolhe os movimentos
e passam a voar baixinho!...
 
António MR Martins

quarta-feira, 28 de julho de 2021

José Luís Outono

 

Capa do livro "Enredos & Outros Mares",
de José Luís Outono


RASGOS
 
espelhos provocantes
rodopiam em surdinas sem avisos
sempre em reflexos de novidades inéditas.
 
os mares multiplicam-se em questões de marés
provocantes
e o velho horizonte é uma caligrafia desordeira
onde cada rasgo de tinta azul
golpeia o impensável
e os ombros cansam-se do constante adorno
e hesitante emenda.
 
ouço um grito – agora ou nunca.
 
e a agulha do gira-discos rasga mais uma estria
da filosofia da conveniência – talvez amanhã ou depois.
 
até os sinos precisam de maestros coerentes
não vá a pauta corromper-se
e as claves adormecerem em rasgos hesitantes.
      
José Luís Outono, in “Enredos & Outro Mares”, página 20, colecção 100Prosa, edições 100 Títulos (uma chancela da editora Edições Esgotadas), 2021.