terça-feira, 30 de maio de 2017

Fernanda Dias


Fernanda Dias, foto Hoje Macau.



o lótus e a libélula

eu queria-te sagaz e livre
voando sobre um lótus de cetim carnudo

a vida fervilhando inteira
no charco limoso
um denso vapor letal
subindo, sublimando o visco
polindo o olho facetado e arisco
de um insecto cor de opala

eu queria isto e queria-te à janela
sobre os lagos de Nam Van
eu queria tudo.


Fernanda Dias, in “chá verde”, página 38, edições Círculo dos Amigos da Cultura de Macau, 1.ª edição, 09/09/2002.

segunda-feira, 29 de maio de 2017

No suor do teu vindimar


Imagem da net.



Na dorna
onde adormece a vinha vindimada
fervem os prazeres líquidos
dos deuses,
o néctar da tua essência
na agitação
de um apelo soberbo
ao cálice da tua magnificência.

Restauro de um engaço
em resíduos do único delírio
pelo cheiro dos vinhedos
desnudados
ante o teu rosto resplandecente
e tua boca sensual
de travo agridoce.

Viajas pelo esmagar dos bagos,
sonhadora,
como que levitando teu corpo
misturado
com o prazer do teu transpirar
por entre as castas da madrugada.


António MR Martins

sábado, 27 de maio de 2017

António Ramos Rosa


António Ramos Rosa (1924-2013), imagem da net.



A FACILIDADE DO AR

A facilidade escreve-se.
A mão do dia é branca.
A luz do mistério
é animal.
Amar é olvidar
com estas árvores
com estas nuvens
com este sopro vermelho sobre as coisas.
A evidência do mundo é o barco do ar.
Visível a respiração da ausência.
Sem destino, para além dos signos,
o rosto confiante é o puro espaço
onde todo o vago é insinuante afirmação
e a paixão um murmúrio de leveza.
O sangue circula em palavras claras
e a doçura delira
na iminência que dura num rumor iluminado.

António Ramos Rosa (1924-2013), in “Facilidade do Ar”, página 19, edições Caminho, da Poesia, Junho de 1990.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

A. M. Pires Cabral


A. M. Pires Cabral, imagem da net.




DESESPERANÇA

Já não sei que mais navios
buscarão este insalubre
litoral nosso desfeito
dentro da própria espuma

Já não sei que mais navios
cortarão na noite intensa
velhas ânsias de chegar
sua renascida pressa

Já não sei que mais navios
virão com carga no ventre
abastecer a distância
interior da minha gente


A. M. Pires Cabral, in “Artes Marginais”, página 52, edições Guimarães Editores, Novembro de 1998.

terça-feira, 23 de maio de 2017

Nas tuas ameias


Imagem in pixabay.com



Rasgo em ti
sombrias fronteiras amedrontadas
em gemidos ponteados de sedução
numa aromática melodia
que saboreio prazerosamente
em devaneios cúmplices
de extenuante sentido único.

Sinto em ti
os poros desbravados 
à míngua de uma língua cativante
enquanto o suor das nuvens
salpica a terra ressequida
ao som do tocante embalo
de todos os grilos cantantes.

Aquece em ti
a loucura saborosa
de uma libido insinuante
no desembocar da perfuração
entre as raízes da árvore
que nos presenteia a sombra 
de todas as sentidas frescuras.

Resta em ti
o fragor de todas as ondas
na esbelta sensatez do corpo
ao teu areal de acolhimento
ante o voo duma gaivota
e um sensual sorriso
na busca de um sono sonhador.


António MR Martins

terça-feira, 16 de maio de 2017

António Ferreira


Capa do livro "O Comboio de Lúcifer", de António Ferreira.
Edições Assírio & Alvim.




PHOTO-PIECE

As olheiras perversas glosam
a banal liturgia do andrógino:
a camisa desabotoada no peito, o jeito felino da cabeça.
Tudo isto outrora foi escrito em nome de
uma sabedoria qualquer,
do espelho votivo a que celebramos,
da ânsia carnal de estar entre a tribo.
Tudo hoje se consome no desalento da pose,
sob a voz impudica da sibila,
na estúrdia que nos absolve do caos.


António Ferreira, in “O Comboio de Lúcifer”, página 16, edições Assírio & Alvim, Setembro de 1997.

domingo, 14 de maio de 2017

Ler-te avidamente


Foto: © André Brito



Folheei as páginas
das tuas memórias
renascidas
com o ímpeto
de quem desflora
a vulva pela vez certeira
e de forma intensa.

Folheei as sentidas palavras 
escondidas
que me paralisaram o olhar
imprimindo ávido fulgor
na ansiedade
da concretização
da mais prazerosa leitura.


António MR Martins

Festival da Eurovisão da Canção 2017 (Eurovision Song Contest 2017) - Final (Grand Final) - Ao vivo (Live). Portugal, país vencedor com a canção "Amar pelos dois", interpretada por Salvador Sobral. Letra e música de Luísa Sobral, irmã do intérprete.


Kiev (Ucrânia)

Sábado, 13 de Maio de 2017


terça-feira, 9 de maio de 2017

Manuel Resende




Manuel Resende. Imagem da net.



MORRER NÃO CUSTA 
3.

Na areia suguei o sumo de frutos ausentes,
Fazendo da minha boca a sua própria taça.
Na água bebi o ar que não havia.

Uma anca de areia
Sem braços, nem pernas, nem púbis,
Nem frescas axilas, nem cabelos, nem sequer pele,
Mas apenas o tacto disso.
Última fronteira! Depois de ter andado aos círculos
Numa guerra de mil anos contra um povo vencido,
Mas eternamente cercado,
O invasor entrava pelas casas adentro.

Última fronteira: a mais íntima porta dos sentidos.


Manuel Resende, in “Natureza Morta com Desodorizante”, página 55, edições Gota de Água e Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Maio 1983.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Salpicando amor


Jardim One Oasis, em Coloane. Foto de António Martins.



Parti ao encontro de ti
pelas tranças da estrada
e nesse apuro te vi
correr por tudo e nada.

Saudei tua pele morena
e o teu sorriso sem fim;
perdi-te, e tive pena
de não esperares por mim.

Foste partindo no tempo
que guardarei na memória,
fiquei com esse lamento
retido nesta estória.

Teu nome nunca entendi
por isso jamais te chamei,
somente recordo ali
as flores que por lá deixei.

Há uma luz bem desperta
na origem do que falo,
colhi-te à descoberta
e num poema t’embalo.

A vida tem este cismar
entre paixão e amor,
antes de tudo esfumar
te canto com muito rigor.


António MR Martins

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Gonçalo Lobo Pinheiro


Gonçalo Lobo Pinheiro. Foto de António Martins.



Se a saudade falasse

Se a saudade falasse
E tu, como as águas de um rio,
Seria eu a tua represa
Para te reter em mim e me banhar.
Seria leito, seria caminho
Para te levar, para te acompanhar
Seria ar, seria fogo
Oxigénio puro, luz, calor.

Se a saudade falasse
Seria discurso, seria voz
Para a escrita te oferecer
Num simples e terno poema.
Seria essência, seria razão
Pensamento sim, porque não?
Eloquência, primazia
A tua cor, o teu sabor, com certeza… seria.

Se a saudade falasse
Serias sempre tu
Ocupante do meu sentimento,
Nas horas de longe e de lamento
Porque te amo com tudo o que posso
E serei sempre, a todo o tempo,
Os passos firmes de alguém,
Envolto em ti, seriamente, mais ninguém.


Gonçalo Lobo Pinheiro, in “Sofá das Ilusões”, página 51, edições Temas Originais, 2011.

Inseguras opções


Imagem da net.



Passo torpe, desconexo, sem firmeza,
raiz do medo, rastreio dum sonho
misturado, contínua incerteza
que implora um derramar tristonho.

Passo estreito, imperfeito, mas lesto,
pedaço desfigurado, oblíquo,
denodo incompreendido, o resto,
batalhado caminhar improfícuo.

Passo resistente, foto descartada,
inconveniência calafetada
que silencia qualquer circunstância.

Passo varrido num trémulo discernir,
insustentável feito por conseguir,
que nos perturba a cada instância.


António MR Martins

terça-feira, 2 de maio de 2017

Rui Rocha


Rui Rocha. Imagem da net.



[na cama da noite procuro]

na cama da noite procuro
a tua voz um rasto do teu corpo
um cheiro doce e leve a adormecer
no sono mais próximo do meu

assento o meu queixo desperto
na primeira estrela da noite
e conto as ideias acordadas
que encontro nos teus olhos 

do outro lado da noite
há um prodígio quente do tempo
na sombra dos teus lábios
que espera a claridade dos dias


Rui Rocha, in “Taotologias”, página 43, colecção contramaré / 11, edições Editora Labirinto, Dezembro de 2016.

segunda-feira, 1 de maio de 2017

O olhar da despedida


Imagem da net.



Sinto o adeus no teu olhar,
restante página da vida
que tanto teria para contar.

Sinto a pressão dos teus olhos,
penumbra retida num pranto
moldada por mais de mil folhos.

Tens um vínculo metafórico,
enleio duma tez mais exposta
em baladas de imprecisão.

Vês a esmola não colhida
em substância dissolvente,
ansiando pela partida.

Sinto-te no enlevo do verbo,
aguardando nova gestação
em profícua continuação.

Tanto terias para contar
neste adeus da tua vida,
pressinto isso no teu olhar.


António MR Martins