terça-feira, 29 de março de 2016

Edgardo Xavier






8

Lisboa
Reflexo doce do Tejo
caminho de luz coada
de encontros
com água
azul
e pedras da calçada

Gente e brumas
cheiros e mágoas
lágrimas de um tempo que se esgota
penoso
quando nos afastamos
e nos esquecemos
de amores
barcos
e gaivotas

Edgardo Xavier, in “Lisboa”, série mínima”, n.º 5, página 12, edições Temas Originais, 2015.  

Dá-me um beijo





Como uma folha
tomba da árvore desnudada
tocando os ramos
empobrecidos
até chegar ao silêncio do chão,
dá-me um beijo!...

e quando outra folha
desponta no mesmo ramo
de semelhante árvore
trazendo a companhia de nova vida
e o florescer de outra estação,
dá-me um beijo!...

e se uma ave
poisa de mansinho
no ramo que a acolhe
no consentimento da árvore
perante a magia da pura alegria,
dá-me um beijo!...

se uma nova manhã
renasce no novo dia
difundindo a claridade
perante o florir dos campos
e o perfume de todas as árvores,
dá-me um beijo!...

dá-me um beijo
durante a tarde soalheira
na noite mais invernosa
na manhã primaveril
durante as madrugadas
de todas as nossas noites de loucura.

Dá-me um beijo
a qualquer hora
de todo o tempo da nossa espera
e da ansiedade terna da nossa vida.

António MR Martins   
 
 Dia de S. Valentim, 14 de Fevereiro de 2016                                     

quarta-feira, 23 de março de 2016

Alvaro Giesta






[O arado sulca a terra]

O arado sulca a terra…
rasga-a,
mergulha no vazio
lavra a lavra
neste espaço em branco do silêncio;

a enxada a cava e a prepara
para a água a ferir com seu sémen,
para a colheita da palavra

No ventre prenhe da terra
a semente em ânsias por nascer
e ser árvore

Em demanda do azul,
o novo sol

Da convexidade do ventre convexo
nascem amplos os horizontes
que respiram na junção da terra ao corpo

A palavra se faz poema!

Alvaro Giesta, in “ Um Arbusto no Olhar”, página 27, edições Calçada das Letras, Outubro de 2014.

miragens





sinto faltas e vazios, em mim.

vejo-me num contínuo debruçar
para o abismo existencial.

pedaços de meu corpo,
adormecidos,
se perdem na sua dormência.

sinto profundos cortes da carne,
donde tentaram tirar o mal
com que me deito,
pela raiz.

mas tudo parece ser em vão
embora a esperança
seja interminável.

tenho segundos e minutos,
muitos,
talvez horas ou dias,
quiçá meses,
de alguma felicidade.

mas já tenho tempo demasiado
de amargura.

 
António MR Martins, in “Severo Destino”, páginas 16 e 17, n.º 3 da série “mínima”, da Temas Originais, em 3.ª Edição, Março de 2016.  

domingo, 20 de março de 2016

Gonçalo Lobo Pinheiro





Na cidade

E a cidade adormece
Depois do ocaso forte de um dia morto.
Nada fiz, apenas assisti ao definhar do sol.
Podia lá eu salvá-lo, se a noite se ergueu.
O ar petrificou as minhas acções
Nesta noite de verão frio.
Se quiseres grito por ti,
Mas nada mais posso fazer.
Estou atado a esta ignorância nocturna
Que vai e vem todos os dias, antes de me deitar.
Pela janela vejo a cidade,
Engolida na alta noite.
O som das luzes criam em mim
Sonambulismos de chorar.
Quero dormir!
Acordar num sonho da cidade branca
E sorrir!

Gonçalo Lobo Pinheiro, in “Etéreo”, página 29, edições Temas Originais, 2010.

Último desígnio


Imagem da net, em: www.slideplayer.com.br


Sinto o tornear do sentido das coisas,
Nesta ambiguidade de mim, em mim,
Para mim.
Tudo me parece turvar a visão.
As feições das linhas curvas ou rectas,
Que adornam tudo o que me rodeia.

Há grandes dificuldades em poder clarear
E clarificar os condimentos
Neste círculo em que me mantenho
E instalo.

Tudo me parece igual,
Tudo me parece desigual,
Nestas ambivalências de ambíguo contraste.

É este sortilégio incoerente
Que me amanha o imo
De forma consecutiva e ultimadora
Neste último respirar.

António MR Martins

quinta-feira, 17 de março de 2016

João Luís Barreto Guimarães





Às dez e dez


Em Malta o dia
acontece sempre pela faixa do lado
(coisas que foram ficando da condução inglesa).
Na cidade de Mdina a
igreja usava dois relógios (um
mostrando a hora certa para chamar os fiéis
o outro a hora errada para enganar o diabo). O
demo não deveria ater-se
em assuntos do tempo
(mesmo se a hora parada acerta
duas vezes por dia)
àquela hora a cidade escapava ao mau olhado –
quer Cristo quer o relógio
esperavam-nos com um abraço aberto
nas dez e dez.
 

João Luís Barreto Guimarães, em “Mediterrâneo”, página 46, edições Quetzal Editores, Março de 2016.

segunda-feira, 7 de março de 2016

João Carlos Esteves





NA SIMPLICIDADE DA EXISTÊNCIA

no murmúrio das águas do regato
deslizam ecos sussurrados
de um tempo de desejo
e de paixão

irrequietas gotas apressadas
beijam margens
em pelejas inocentes
no caminho para a foz

na simplicidade da existência
as gotas aspiram ser mar
tal como o meu sorriso aspira
desaguar nos teus lábios

João Carlos Esteves, em “Inventei-te as manhãs”, página 59, edições Chiado Editora, Julho, 2013.  

domingo, 6 de março de 2016

Joaquim Alves





XXXII

Encontrámos aqui o vinho, o gelo, o copo, o silêncio,
num lugar ermo da terra feito e madeira velha por tempo:
o ressuscitar dos nossos sentidos e voz;
A escrita germinando
nos degraus húmidos do resistir. 

Não há inverno nem verão. Ninguém fala.
Escuta-se o rumor do vento, se o vento sopra,
o silêncio das casa, da amphora.
E há vinho: natureza fresca.
E há mel, recolhido cuidadosamente no ano anterior.
Encontrámos aqui o vinho, o gelo, o copo, o corpo.
E fizemos amor.

Joaquim Alves, in “Amar Mata”, página s/n.º, edição do autor, Dezembro 2015.  

Porto de abrigo





É no cálice do ínfimo néctar
de tuas vinhas
que emerge o som
mais inebriante
de todas as melodias da natureza.

És o cartaz mais apelativo
onde a simples mensagem
tem foros de sagaz
e espontânea
interpretação.

De ti o êxtase
que sublima o fragor
de nossos corpos
alvo de todos os sentidos,
por cada madrugada
que vai amanhecendo.

És o porto de abrigo
na sentença
que designa
o desenrolar da minha vida.

 
António MR Martins 

terça-feira, 1 de março de 2016

Lita Lisboa






Evolução geológica

Nada tenho contra as crenças,
Ou qualquer religião,
mas o Sol olhou p’ra mim
e pôs-me esta equação:

- O que será que farias
se eu deixasse de existir?

- Decerto não havia vida,
terei de admitir…
despida de preconceitos,
respondi-lhe a sorrir:

- Se vim dum Australopithecus
e um dia hei-de ser pó
qual a indecifrável disputa,
entre a Biblia e a Ciência,
que fazem parte de nós?...

Big Bang em explosão cósmica,
prótons, electrons, nêutrons…
São barrigas parideiras
de gases e poeiras
que em uniões frutuosas,
dão origem às nebulosas,
que pariram as estrelas
até que nasceu o sol?...

Mas se Deus criou o céu,
fez as flores e a Terra,
separou luzes, das trevas,
criou o Sol, as estrelas
os animais e o homem…

Qual o meu papel na Terra?
Sou filha dum asteróide,
ou nasci dum Deus Maior?

Lita Lisboa, in “ Nuances Poéticas”, páginas 78 e 79, edições Chiado Editora, Janeiro, 2016.   

Superior matéria


Imagem da net, em: www.geekness.com.br



A cortina do tempo
traz consigo a névoa
que ininterrupta
se vai reabrindo
para que a claridade pura
assuma o radiar do novo dia

por esse sedoso madrugar
surge o apelo sedutor
ao fortalecimento da vida

nesta envolvência
a contemplação do esplendor

 
António MR Martins