sábado, 31 de agosto de 2019

José Jorge Letria


José Jorge Letria, imagem da net.




[Andamos com o sono desencontrado]

Andamos com o sono desencontrado,
eu e os gatos. Um lava-se, meticuloso,
junto a um busto de Puccini,
outro olha fixamente um retrato
de meu pai, tirado num tempo
em que a felicidade era um anel
perdido entre a urze e o linho,
em que eu não existia ainda
no calendário tumultuoso dos dias.
O meu pai temia os gatos pretos,
mas só eles sabiam do seu sofrimento
e fugiam dele para não terem,
distantes e benignos, de o partilhar.

José Jorge Letria, in “O Livro dos Gatos”, página 30, edições Universitária Editora, Lisboa, 2001.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Luís Filipe Sarmento




Luís Filipe Sarmento, imagem da net.



25.

Não é lacuna de louco o silêncio entre a dúvida
nem o desdém pelo castigo divino como uma prisão
do destino; nem o louco é alienado
perdido nas distâncias do mar quando o mar é
a maré dos irrepetíveis horizontes como páginas
da infindável biblioteca que busca em todas as margens
das pedras. Percebe o louco as efabulações
sobre o temor do vazio cedendo à ignorância
o paraíso dos ausentes. Entre a merca dos sacrifícios
passa o louco, soletrando o que lhe ocupa o recanto da memória
para que a existência seja mais do que uma oração.


Luís Filipe Sarmento, in “KNK”, página 60 – (Morte de deus), poética edições, Maio de 2019. 


sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Os trunfos da riqueza


Imagem da net.





Num êxodo capital
onde transgridem sem rodeios
os devaneios promíscuos,
que desvalorizam o rigor
deste paradoxo social,
como quem fecha suas pálpebras
quando sente passar o inconveniente.

Tudo fica sem retorno
sem restauro
numa ímpar desigualdade
de intensa amplitude.

Assim se esmagam
as maiorias do desconsolo,
que mesmo com todos os pruridos
recebem no silêncio mais profundo
a invisibilidade daquilo que necessitam.

A riqueza sem trunfos,
que é a da caminhada dum povo,
se desvanece sem resistência.
Os calcanhares são consumidos
pelos aquiles que os sustêm
e todos os rebanhos
passam a sofrer a sua dor mais intensa,
sem quaisquer alternativas.

António MR Martins

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Eduardo Roseira


Eduardo Roseira, foto de Sandra Regufe.





POESIA NOSSA

poesia nossa
que pairas em tudo
aquilo que nos rodeia,
publicado seja o vosso verso.
venha a nós, poetas,
a glorificada inspiração
graças a todas as musas do universo.
a rima nossa de cada dia
nos dai sempre.
não nos deixeis cair na tentação
da neutralidade,
porque neutros só os mortos
e, mesmo esses, não vá o demo tecê-las!
livra-nos do sermos hipócritas
e de todas as maldades impróprias
dos que se prezam
poetas.

Eduardo Roseira, in “sem vós”, página 84, edições Naucatrineta, 2019.

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Zona Sul do Rio de Janeiro


Imagem da net.





Caminho lesto
pelo calçadão em Copacabana
e um suspiro extravasa-me o imo.
Numa liberdade que tanto teme
ali mesmo junto ao Leme.

Divaguei os meus passos
numa pluralidade única,
rumo ao aconchego da Zona Sul.
Ai Zona Sul, Zona Sul!...

Em Copacabana vejo o mar
e as suas cálidas areias,
que acolhem seu ondular.
Solto um sambado sorriso
como se visse golfinhos
em inebriante saltar.

Zona Sul o teu lema
não fala de perseguição,
nem de enredos maquiavélicos.
Toda a torcida bate forte
no jogo da vida suas emoções,
tendo o conforto do tema
que enaltece um super Mengão.

Refúgio de poetas
e cantores
e de tantos dos seus amores
entre o traçado da vida,
que não omite a linda morena
e a tolerância da Lagoa.
Sentir-te é coisa boa,
Ipanema.
Ai Zona Sul, Zona Sul!...

Bordando tão simples estratagema
na bossa nova de Jobim
e nos versos de Vinícius
encadeio-me nesse problema…
Ipanema, um encanto sem fim
e assim nasce o poema.

Trago saudades de ti
e os cantos bailam –me no íntimo
com a profusa sonoridade do violão.
O azul cresce em esperança
pedindo que tanta coisa mude
e assim bate o coração.
Ai Zona Sul, Zona Sul!...

António MR Martins
(escrito por entre os meandros do Rio de Janeiro e de Ansião)

Jorge Vicente


Jorge Vicente, imagem da net.





5.

no meu ventre, uma infinita nascência  de verbo
e a ânsia furiosa de nomear o mundo

esta uma palavra, esta uma combustão
silenciosa de partículas,
aqui um homem e a matéria dentro dele:
uma supernova

aqui um risco dentro da verdade,
ali o silêncio da metáfora.

toda a literatura
toda a tradição
num baixo-corpo
prenhe de linguagem.

Jorge Vicente, in “cavalo que passa devagar”, página 10, edições volta d´mar, Maio 2019.   

domingo, 11 de agosto de 2019

Tabajaras


A favela (agora comunidade) Ladeira dos Tabajaras (parte),
em Copacabana.
Foto de António Martins




Um calibre alucinado
surte morte inesperada,
que um tiro desencontrado
faz tombar a alma errada.

Foi ali o último samba
de quem tanto deu à Ladeira,
numa simples manhã, caramba
culminou a vida inteira.

A comunidade tal chorou
tamanha perda sem solução,
tanto a imprensa badalou
sobre tão dura situação.

No dia seguinte silêncio há,
mas amanhã ou prá semana
mais soltos tiros ao deus dará
cumprirão a falha humana.

Em Copacabana, minha gente
as noites têm outros ruídos,
por aqui está sempre quente
e tantos são os excluídos.

Rio de Janeiro, diferente,
no seu plano demográfico,
tem praia e tem tanta gente
samba, futebol e tráfico.

António MR Martins

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Corcovado


O Corcovado e o Cristo Redentor
vistos a partir do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Foto de António Martins




“Da minha janela vejo o Corcovado”…
eu no Forte Velho subo de trem
inclinado, mas quase bem instalado
vendo as belezas que o Corcovado tem.

Dali vejo o Rio de Janeiro
o azul da água e os portentosos morros
que o circundam,
com o Cristo Redentor testemunhando.

Tão pequeno ali me sinto
e simultaneamente enorme.

Ali sobe o pobre
e o rico
simplesmente por fé e amor.

Ali usufruímos de tanto
que palavras não há para o significarem
verdadeiramente.

Ali quase somos donos do mundo
daquele
e do nosso mundo.

Ali, lá no alto, tudo é maravilhoso.
Quem dera que lá em baixo
também fosse assim!...

António MR Martins

domingo, 4 de agosto de 2019

Mário de Andrade


Mário de Andrade (1893-1945), imagem da net.




O REBANHO

Oh! minhas alucinações!
Vis os deputados, chapéus altos,
sob o pálio vesperal, feito de mangas-rosas,
saírem de mãos dadas do Congresso…
Como um possesso num acesso em meus aplausos
aos salvadores do meu estado amado!...

Desciam, inteligentes, de mãos dadas,
entre o trepidar dos táxis vascolejantes,
a rua Marechal Deodoro…
Oh! minhas alucinações!
Como um possesso num acesso em meus aplausos
aos heróis do meu estado amado!...

E as esperanças de ver tudo salvo!
Duas mil reformas, três projetos…
Emigram os futuros noturnos…
E verde, verde, verde!...
Oh! minhas alucinações!
Mas os deputados, chapéus altos,
mudavam-se pouco a pouco em cabras!
Crescem-lhe os cornos, descem-lhes as barbinhas…
E vi que os chapéus altos do meu estado amado,
com os triângulos de madeira no pescoço,
nos verdes esperanças, sob as franjas de ouro da tarde,
se punham a pastar
rente do palácio do senhor presidente…
Oh! minhas alucinações!

Mário de Andrade (1893-1945), in “50 Poemas e um prefácio interessantíssimo”, página 30, edições Nova Fronteira, 2012.