sábado, 31 de outubro de 2015

Arlinda Mártires







Todas as coisas me falam de ti:
A brisa
na franja do vestido;
O pequeno jardim
sem ti despido;
O lençol bordado
no vazio a meu lado;
O terraço,
os planetas, as estrelas
querem saber dos teus passos
(Sem teus olhos
nem dá graça vê-las!).
No restolho dos caminhos,
na vastidão da planície,
no eco do cante na taberna,
paira a melancolia
do teu corpo ausente.
Cresce no silêncio tardio
do final do dia.
O sol abandona o casario
e comovido se evade
no último comboio da tarde.
 

Arlinda Mártires, in “Impressões do Real”, página 17, edições Temas Originais,  2015.    

 

Permanências





Resto-me nos pedaços de mim, enquanto
a secura das verdes árvores as perece, ante
tanta eminente falta de cuidados.

Sinto-me cansado de mim, e dos outros, que
já nem congemino caminhos, nem atalhos ou
destinos que produzam surpresas.

Na neblina me quedo em silêncio,
agachado de todos os métodos, perante
o paciente fluir das horas.

No tempo de memorizar todos os tempos, passam
por mim as sequelas das quezílias, dos confrontos,
dos embates, dos prélios, das disputas, como simples
manteiga derretendo, arduamente, na frigideira eloquente
da vida.

Anseio, intimamente, pelo palco da esperança, novidade
que não acontece. E o sombrio respirar dos rios me informa,
desafiante: das mesas sem pão, dos campos sem colheitas e
das ervas daninhas que atropelam todos os sentidos.

Recomeço o adormecer.
Começa um novo sonho.

 
António MR Martins

sábado, 24 de outubro de 2015

Gonçalo Lobo Pinheiro





Como uma ave

Quero ser uma ave
E pairar no alto, suspenso.
Sentir a pressão do ar em mim.
Leve, perceber as nuvens.
Ouvi dizer que contam histórias aos pássaros.

Apetece-me viajar a sul,
Onde o espaço aéreo é mais quente.
Lá, contemplo as paisagens do Estio.
Sinto-me mais incluído,
Mais cercado pela vontade do sol.

Gonçalo Lobo Pinheiro, in “Etéreo”, página 34, edições Temas Originais, 2010.

Escasseia-nos a liberdade libertada no voo de uma ave


Imagem da net, em: www.ultradownloads.com.br



Solta ave
não passes de soslaio
nas terras de ninguém,
num prenhe deslumbramento
acompanhada das nuvens
da mais densa rebelião.

Ave só
não poises no desalento
e nos ramos despidos das árvores,
saltitando pela vez primeira
em intrépido desleixo
como se essa vez… fosse a última.

Única ave
não desenvolvas a saudade
no íntimo dos humanos,
que te observam pasmados…
ruídos da plena inveja
ante a sedução do teu voar.

Ave livre
leva o sonho com o teu voo,
foge do degredo rumo à vida…
que a nós, por cá, sonhando,
por breves ou longos minutos,
só nos acontecem pesadelos.

António MR Martins

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Licínia Quitério





46.

Subíamos os degraus da paixão
a esconjurar demónios de viagem,
a conjugar passados com futuros.
Tempo de brincar com palavras carnívoras –
sexo, gengibre, estandarte – ou palavras
de seda – abraço, infinito, teorema.
Às vezes era o sol que nos vestia de ouropel
e apagava o rasto dos chacais.
As mãos pousadas em redes de silêncio,
tecíamos pontes sobre o tédio.
Antes de sabermos a medida do frio,
quando se extingue a brasa e as flores de gelo
descem, exangues, a vertical das noites.
Antes do bolor nas paredes.

Licínia Quitério, in “Os Sítios”, página 69, edição de autor, Novembro de 2012.  

Mais do mesmo


Imagem da net,  em: www.temasbblicos.blogspot.com



Acercam-se memórias do passado
neste percurso aspirando ideais;
assim: num sentido transfigurado…
somos dominados, mestria dos maiorais.

Peões perdidos num emaranhado
sem vislumbre duma sadia saída,
um todo se sente muito saturado
mas continua a querer da mesma vida.

Não se entendem estes resultados
em que os mandantes não são mudados…
ficamos cercados p’lo mesmo murete.

Prevejo que não mude a exploração
pela envolvência de mais contenção
aromatizada p’lo mesmo pivete.

 
António MR Martins

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Manuel C. Amor





12

 
“Ainda há ruas para a revolta do mundo”
Jorge de Sena

 

os sorrisos que na boca das mulheres
encostadas nas ombreiras
se abrem para distâncias maternais
são metais fundentes
imagens que não morrem
palavras inexequíveis de escrever
num corpo que já não é corpo

E não se trata
de diluir angústias
deslizar no esquecimento
muito menos tropeçar na vastidão dos mares

Manuel C. Amor, in “ Canto de Diáspora”, página 32, edições Temas Originais, Vozes de Angola / 1, 2013. 

Tendo-se quase nada





Brilham teus olhos, azedos de fome,
página branca, desígnio da vida;
nada tens… quase tudo te consome
nesta herança sem qualquer guarida.

Rugas profundas na carne da pele,
mórbido destino sem contemplação;
feroz sociedade que te repele
entre os vazios da consumação.

Abrigos rasgados, vestes ligeiras,
só pó do teu tempo nas prateleiras
na pobreza-valor da tua memória.

Desapego do ser agora perdido,
nos repelões batidos sem sentido…
julgado, por fim, como sendo escória!...

António MR Martins

sábado, 10 de outubro de 2015

Dora Nunes Gago






Toada de Outono

I

Mar de folhas
revoltas
que este Outono trouxe:
serenata de esperanças,
pairando soltas.

 
II

Desfolhar dourado
de dias suaves
e sonhos revoltos,
árvore ansiada
plantada
no solo da alma,
promessas de vento escarlate
a escorrer
pelas margens da alegria.

Dora Nunes Gago, in “A Matéria dos Sonhos”, página 64, edições Temas Originais, 2015.

Ruínas da razão


Imagem da net, em: www.cempalavras.wordpress.com



Há pedaços podres de vida morta
espalhados pelos confins do mundo,
percalços onde a razão se entorta
até ao seu sentido mais profundo.

Desintegra, aos poucos, sua consistência
com menos apelo, mas mais agravo,
perdendo toda a sua sapiência
entre o seu mais recôndito travo.

Esmorona-se ao poder corruptivo
ruindo mordazmente seu activo,
suprimindo, por inteiro, seu fulgor.

Se esfuma sua razoabilidade
nas réstias da frágil vitalidade
restando à razão ficar sem valor.

António MR Martins

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Vítor Cintra






SEM MEDO

Tenho apenas saudades do passado,
Do tempo em que vivemos entre amigos.
Éramos nós, vivendo lado a lado,
Um dia a dia, sem medo de perigos.

Indiferença não tinha cabimento,
Porque o teu problema era meu também.
Partilhava-se até o sofrimento,
Jamais se abandonava à dor, alguém.

Inveja não havia de ninguém.
Apenas união, camaradagem
E boa vizinhança. Era a mensagem.

Qualquer uma alegria era, porém,
Razão de regozijo para a gente
Pois ninguém se sentia indiferente.

Vítor Cintra, in “Ao Acaso”, página 32, edições Lua de Marfim, Março de 2015.

infinita envolvência


A sesta, de José Malhoa (1855-1933) - 1909.



e as pálpebras cansadas se estendiam
sobre as vistas pendentes do próximo abraço
intimista.

as folhas abotoavam os ramos cruzados
da árvore, que permanecia estática, localmente,
mas ondulante ao fruir do vento.

a paisagem incólume
ali permanecia.

ao fundo
algumas aves ondulavam, também,
pareciam quase tocar o céu
em movimentos voadores que
pareciam ensaiados.

o ambiente bucólico estendia-se
até que a margem que as pálpebras deixavam livre
pudesse gravar no íntimo do seu dono,
corpo também cansado
sentado à porta daquela casa velha,
aquelas imagens únicas.

tantas histórias, tantos anos, meses , horas,
tanta envolvência esquecida
que aquele ser reservava, unicamente, para si.

as aves ao longe já lá não moravam,
mas a árvore ali permanecia
desabotoando ramos numa empatia única
com aquele espaço tão belo.

por fim
as pálpebras não estavam mais cansadas
o corpo sentado à porta da casa velha,
também não,
o silêncio era imparável,
mas a árvore fez brotar flores dos ramos
da sua vida.

António MR Martins