terça-feira, 30 de julho de 2019

Tarso de Melo


Tarso de Melo, imagem da net.




Eles querem mais

516 anos. E os índios que estão nas terras que interessam aos
brancos são mortos aos montes: sem registro. 516 anos. E os
negros que enfrentam os limites definidos pelos brancos são
mortos: como culpados. 516 anos. E as mulheres que não acatam
(e mesmo quando acatam!) as ordens dos homens são mortas:
como suspeitas. 516 anos. E os pobres que não se dobram à
máquina que reproduz a riqueza dos ricos são mortos: como
inimigos. 516 anos. E os trabalhadores que querem respeito
aos direitos que ainda têm são mortos: como uma afronta. 516
anos. E os “diferentes” que não se escondem (e mesmo quando
se escondem!) são mortos: como um mal. 516 anos. E crianças
que brincam com os brinquedos alheios são mortas: como um
aviso de que 516 anos foram pouco. Eles querem mais.

Tarso de Melo, in “Íntimo Desabrigo”, página 70, edições Dobradura Editorial e Alpharrabio Edições,  São Paulo, 2017.

segunda-feira, 29 de julho de 2019

“O Rio de Janeiro continua lindo”


O Rio de Janeiro visto do Corcovado. Foto de António Martins.




Faz calor no inverno do Rio de Janeiro
para um europeu-ibérico, como eu.
Aquilo a que os cariocas chamam de frio
é como uma primavera ibérica, mais quente.

Como são díspares as coisas do universo!
E as serras, as florestas, as casas, a flora,
os aromas, os solos, os animais, a restauração,
os jornais, os paladares, as essências, os frutos,
as palavras, os olhares, as gentes e as cidades.

Lisboa tem colinas, que são sete,
e o Rio de Janeiro é rodeado de morros.  
Tal a transforma numa cidade única
auferindo de uma beleza surpreendente.

Depois, tem a música e os músicos,
o samba e a bossa-nova, com várias variantes.
Tem poetas para todos os gostos
e tem poemas, tem canções e tem cantores.

Tem melodias na praia, suaves e ritmadas
e tem cânticos que nos falam da morte
nos seus versos por outras paragens.

O Rio Janeiro é pleno de contrates,
mas apesar de tudo…
continua lindo!

António MR Martins

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Rumo à vitória


Imagem da net.




Traçam-te destinos atrozes
nos resquícios dos nódulos doridos
por entre os mamilos da esperança.
Desalinham-te as ideias
e os desejos prometidos
começam a saber-te a pouco, muito pouco.

Rasgam-te o peito,
de grosso modo,
na ambiguidade estreita da desilusão
e o apreço por ti própria
inicia o sucumbir desalinhado da vida.

Estreitam as respostas,
enquanto as perguntas são inúmeras…
que quase esquartejam a fragilidade
subsequente da ironia
perante este trânsito, quase fatal.

Porém, surge uma ténue luz,
a esperança que enche a mínima
opção para o combate, a luta forma-se
e a vontade torna-se imensa.

Hei-de vencer mais este obstáculo,
com toda a força que venha do fundo de mim! 

António MR Martins

domingo, 14 de julho de 2019

Weydson Barros Leal


Weydson Barros Leal, imagem da net.





NOITES DE IPANEMA

Da janela vejo o Cristo Redentor.
Seu perfil totêmico – a cabeça levemente
inclinada sobre o peito – em nada faz lembrar
a forma em cruz de quando visto de frente.
Este ângulo dissolve-lhe os braços,
e com a mão direita
a estátua aponta para mim.

A cidade segue
sob seu olhar pétreo e impassível,
como deve ser o olhar de um deus.
Abaixo da corcova em que flutua,
marcham os homens uma estranha
procissão, e tudo gira ao redor desse andor.

Ela não mais saberá se as tardes daqui anunciam mudanças.
O silêncio confunde a memória, apaga seus rios e
escreve nas pedras uma nova maneira de secar.

Sobre seu nome restará um alfabeto
que já não terá descendentes.

O tempo mistura cores e formas
na tentativa de perdurar paisagens, mas em vão.
Em breve a noite virá e a estrela de hoje
morreu há um milhão de anos.

Passam as horas e não chegará uma palavra sua.
O seu silêncio é sua sirene,
sua emergência,
seu escudo de luzes.
Pela janela chega a certeza de que
a estrela de ontem não retornou esta noite.
Outra falta ilumina a sua ausência.

Weydson Barros Leal, in “A Quarta Cruz”, páginas 30 e 31, edições Topbooks, 2009.  

terça-feira, 9 de julho de 2019

Hilda Hilst


Hilda Hilst (1930-2004), imagem da net.




[Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca]

Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca
Austera. Toma-me AGORA, ANTES
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.

Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.

Te descobres vivo sob um jugo novo.
Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo
Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.

Hilda Hilst, 1930-2004, in “júbilo, memória, noviciado da paixão”, página 73 (I, de “prelúdios-intensos para os desmemoriados do amor”, para Mora Fuentes), edições Companhia Das Letras, poesia de bolso, 2018.