segunda-feira, 30 de maio de 2016

Gonçalo Lobo Pinheiro





Os dois caminhos

Fotografei tudo. Desde a tua nudez às Ruínas de
São Paulo. Perdi-me no teu corpo e nos espaços
do Templo de A-Má. Em Macau, sinto-te nua e
subo ao Farol da Guia. Ali, a luz ilumina os teus
seios e a colina de Mong-Há. Embaracei o teu
cabelo e na praia de Cheoc Van fui feliz. Como
te amo, minha mulher, nesta cidade que um dia
nos juntou.

Gonçalo Lobo Pinheiro, in “Macau”, página 25, n.º 25 da série “mínima”, manufacturada, edições Temas Originais, 2016.

 
Ruínas de S. Paulo, Macau, por Gonçalo Lobo Pinheiro

repercussão


Imagem da net, em: www.nepo.com.br


trago versos desalinhados
no cárcere
da minha razão.

sinto meu corpo dorido
a adormecer
por cada sol posto
a um tempo inesperado.

tudo adormece
em mim,
neste meu poema
do ríspido desespero.

António MR Martins, in “Severo Destino”, página 19, n.º 3 da série “mínima”, manufacturada, edições Temas Originais, 3.ª edição, 2016.

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Conceição Oliveira





Azul Grécia

O vento cerca o mar e retira dele o azul.
Depois
atira-o às aves que pintam o céu de gritos
para que possam retomar o caminho de volta.

A cor desce sobre a casa caiada
em danças gregas.

E a casa
porta carcomida
mergulha na ombreira
da orla azul.

Faz doer os olhos.
Como em Miconos, todas as casas.

Conceição Oliveira, in “Da Raiz (transparências)”, página 41, edições Palimage, Terra Ocre, Lda., Dezembro de 2014.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Memórias duma madrugada





Num ténue dormitar
um sonho traz-me recordações de ti
perante uma esbatida e bela imagem
que faz apelo ao aconchego do leito.

Os olhos abrem-se-me
moderadamente
e uma volta para o lado contrário
faz-me tornar ao enredo passado
que se reabre com empolgantes novidades.

Sorris-me num aceno turvo
e eu estendo-te a mão direita
com a intenção de tocar tua face.

Murmuro teu nome…
pelo menos assim me pareceu,
mas tu respondes-me
como se tivesse sido audível
tal murmurar.

Respondo-te com outro sorriso
enquanto uma nova manhã
nasce sorrateira pelo horizonte
e um jovem sol renasce do ocaso
reflectindo-se suavemente
por entre teus finos cabelos…

De repente
soa o alarme do despertador.

São horas de me levantar!...

 
António MR Martins

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Cidade vindimada


Imagem da net, em: www.quantocustaviajar.com



Pintam os bagos da felicidade
em cachos de renovada alegria,
nas vinhas fingidas da cidade
entre linhas onde cintila a poesia.

Aloiram-se tantas parras dispersas
num encanto porque tanto se cisma
e as gentes movem-se desconexas
ensaiando uma nova vindima.

Soam os cânticos pelo campo-chão,
as cestas se enchem do futuro vinho
nesta azáfama da compensação.

Da terra lhes descobre o caminho
e à cidade aporta a sedução…
pela noite, se dormem de mansinho.

 
António MR Martins

Joaquim Alves





XLIII

 
Baixo os olhos à torrente de água que nos liga.
Os teus olhos prendem-se atentos
ao lento declinar da tarde
e espantam-se.
A água não mais é cor de água.
Transporta, num turbilhão de nervos,
o nosso sangue,
à procura de repouso
no interior mais fundo da terra.

 
Joaquim Alves, in “ Amar Mata”, página s/n.º, edição do autor, 2015.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Ana Wiesenberger





[Quero desfilar nua pela floresta]

Quero desfilar nua pela floresta
E sentir a urze e o musgo a misturarem-se
Por entre os dedos dos meus pés
Quero deitar-me sobre penedos e respirar em cada músculo
As arestas frias e sólidas do tempo

Quero envolver-me numa relação fútil com o sol
E deixá-lo levar-me à praia, de barco e de biquíni

E quando a noite chegar, não me farei rogada, lua
Abraça-me na tua luz fria e misteriosa
Revela em mim as partes hesitantes do meu ser ancestral
E impregna o meu corpo de magia

E como tu me compreendes e sabes, que eu não sei ser fiel
Deixa-me no areal a dormir, para a luminosidade doce do
sol paciente
Me acolher
Numa concha de maresia

Ana Wiesenberger, in “Idades”, página 24, edições Esfera do Caos, Maio de 2012.

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Consequências inconsequentes


Belas - Quinta Nova da Assunção, por António Martins


A cal despejada
Incendeia um frio hirto
Entre as arestas consumidas
De um tempo sem tempo

Um conforto
Desconfortante
Sem fuga
Determinante

Mas essa cal
Ajeita muralhas
Entre as paredes do pensamento
Que inventam corridas
E passeios de ribalta

Noutro sentido
(Talvez figurativo)
A água se queda
Na piscina da redenção

Até que se abra um feixe
Pelo bracejar
Da insatisfação
Ou da mera ilusão
Omitindo cada presente

 
António MR Martins

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Recordando o meu saudoso amigo e notável poeta Vítor Cintra





Pombal

Primeiro foste castro, bem antigo,
Que Roma transformou em fortaleza.
Depois um templo godo, convertido
P’los mouros, em muralha de defesa.

Mas quando Afonso Henriques conquistou
As terras, deu à Ordem dos Templários
Mandato e Gualdim Pais edificou
Castelo, nos seus modos já lendários.

E, quando pelo Papa foi extinta
A Ordem conservou-te, mas distinta
No nome, por acção de Dom Dinis.

Jamais tu conheceste uma derrota,
Nem quando aconteceu Aljubarrota,
Fiel a Dom João Mestre d’Avis.

Vítor Cintra (1941-2015), em “Na Senda dos Templários”, página 26, edições Lua de Marfim, Fevereiro de 2015.

sábado, 7 de maio de 2016

Lília Tavares






SEGREDO

Quebrados
o vazio e o silêncio das águas,
segredo-te
que
o que tenho para te oferecer
nesta tarde apenas desenlaço
na intimidade dos ventos.

Lília Tavares, in “evocação das águas”, página 38, edições Seda Publicações, Novembro de 2015.

Tudo cai minha gente


Imagem da net, em: www.pt.wikipedia.org



Caem breves pela noite
pedaços de frio cortante,
doendo como açoite
na pele quase distante.

Caem farrapos sofridos
na madrugada perdida,
como sórdidos bandidos
infectam tanta ferida.

Caem gotas repicadas
que ferem os secos ossos
e as mentes violentadas
têm pensamentos jocosos.

Caem praxes do inverno
alteradas sem ter causa,
o agreste se faz terno
a cada tempo de pausa.

Caem pás e picaretas,
bigornas e martelos d’aço;
enquanto tantas caretas
perdem aqui seu espaço.

Tudo cai, de grosso modo,
e o que falta inventar,
eu cá não me incomodo…
deixem o comboio passar!

António MR Martins

terça-feira, 3 de maio de 2016

José Ilídio Torres






Da estranha anatomia dos ventos

vens lavar-me os pés com as minhas lágrimas
perguntas-me pelos poemas para me enxugares
e eu, como um arroto de Deus, como um sapo
expludo em pés de laranja-lima, depurado

mais tarde, no recanto absurdo de um coração
planto hortas, corto voos aos patos, mato galinhas
sou muito mais que uma navalha, o corte

rio-me de pássaros, rasuro aviões que passam
jogo à bola com um sorriso de trapos

e no mais recôndito de um afago
entre o desejo e a carne
há um veleiro morto num quintal

pode soprar o vento por umbrais
pode haver um querer maior que cais
pode haver facas onde nunca se suspeitou de
punhais

e ser até o amor, um somatório de coisas banais

 
José Ilídio Torres, in “Dissertação escusada sobre a solidão das árvores”, página 48, edições Lua de Marfim, Abril de 2016.

A palavra da vida


Imagem da net, em: www.elo7.com.br



Há uma toponímica invisível
No espaço do nome esquecido
Onde não moram mais letras
Com que esse nome se escreve
E se diz.

Há um tempo diferente para o poeta,
Entre as páginas da vida.
As passadas,
As presentes,
As futuras.

Por fim,
Ficam outras palavras.

Outras se esfumaram,
Aqueloutras memorizaram-se.

Eternizando-se
Aquelas que definem
O grito da própria vida

 
António MR Martins