quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Os amantes sem dinheiro



Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.

Eugénio de Andrade

No desabrigo da infelicidade


No rasgo da memória sofrida
uma ténue recordação
onde se abriga o desejo

Não se sentem os sentidos
de quem se encontra perdido
sem fuga aparente
das normas da consumação
e dos atritos sequenciais

A visão turva
encadeia cada horizonte
que a vista já atropela

Não se respiram os balidos
nos gemidos do corpo parido
que logo fica doente
perante tanta constatação
sem recurso a rituais

A bala anda à solta
no desencontro do seu destino
que mais profundo se torna

O sol jamais se alcança
nesta felicidade
por demais escorregadia

O homem
esse não dorme
mas também não sobrevive
a tanto rude golpe
que lhe penitenciam a morte
como simples tormento


António MR Martins

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

[o céu é aquela clareira]


o céu é aquela clareira
onde deito os olhos com ténues
cambiantes de cor que quase
gasto nas mãos, e como. como
o céu e aguardo uma
digestão convulsa. enquanto
o aguaceiro seca na terra antes que o
possa beber e deus se
vinga de mim ditando
os versos que escondem
a água ao mundo. já as
fogueiras florindo em volta,
murchando o dia que me
persegue. uma intervenção
divina para me resistir

valter hugo mãe
estou escondido na cor amarga do fim da tarde

Onde o amor não existe



Traz a esperança na esporta
não lhe espoliem tantos sonhos,
perder um tanto jamais importa
na espera de tempos risonhos.

Pura utopia nos alentos
onde drena a ansiedade
e sem assomar outros proventos
que afaguem a felicidade.

Tanto bate a água na pedra
em ritmada precisão cíclica,
como o apupar sarcástico.

Então o pecúlio já não medra
nesta viagem tão fatídica,
omitindo o termo mágico.


António MR Martins

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quarta-feira, 24 de agosto de 2011

A miséria do meu ser


A miséria do meu ser,
Do ser que tenho a viver,
Tornou-se uma coisa vista.
Sou nesta vida um qualquer
Que roda fora da pista.

Ninguém conhece quem sou
Nem eu mesmo me conheço
E, se me conheço, esqueço,
Porque não vivo onde estou.
Rodo, e o meu rodar apresso.

É uma carreira invisível,
Salvo onde caio e sou visto,
Porque cair é sensível
Pelo ruído imprevisto...
Sou assim. Mas isto é crível?

Fernando Pessoa

Um raio de sol em teus braços


Outra manhã se colore na brandura
nos meandros textuais de tanta prece,
se denota a simbólica frescura
que empolga a visão que enriquece.

No hálito dos campos aroma fértil
interacção que a natureza expõe,
soltar de pedra da mão como projéctil
na transformação a que tudo se propõe.

Sol brilhante de reflexo vigoroso
entre os braços abertos para o céu,
onde o azul preenche tanta magia.

Êxtase que sorri, findar saboroso,
imaginar da natureza e seu véu
num expoente tão belo que é poesia.


António MR Martins

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terça-feira, 23 de agosto de 2011

Cinismos


Eu hei de lhe falar lugubremente
Do meu amor enorme e massacrado,
Falar-lhe com a luz e a fé dum crente.

Hei de expor-lhe o meu peito descarnado,
Chamar-lhe minha cruz e meu Calvário,
E ser menos que um Judas empalhado.

Hei de abrir-lhe o meu íntimo sacrário
E desvendar a vida, o mundo, o gozo,
Como um velho filósofo lendário.

Hei de mostrar, tão triste e tenebroso,
Os pegos abismais da minha vida,
E hei de olhá-la dum modo tão nervoso,

Que ela há de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há de chorar, chorar enternecida!

E eu hei de, então, soltar uma risada.

Cesário Verde, in 'O Livro de Cesário Verde'

Sem apelo nem agravo


Espremem ilações contidas
num desespero deprimente,
por tantas mentes oprimidas,
latido vincular latente.

Nada espera de bom grado
no teor de cada conversa
e o discurso degradado
se faz pela ordem inversa.

Na penúria contaminada
resvalam os impropérios,
sem ter valor ou fundamentos.

Seja a sorte desvendada
pelos intuitos mais sérios
de que padecem os jumentos.


António MR Martins

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Poeta Castrado, Não!


Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!

Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.

Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:

Da fome já não se fala
é tão vulgar que nos cansa
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?

Do frio não reza a história
a morte é branda e letal
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?

E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!

Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
falso médico ladrão
prostituta proxeneta
espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!

Ary dos Santos

Partilha


Partilha do som,
inebriação da simplicidade
dos campos do nosso estar,
onde a profusão de sonoridades
conflui no sentido evolutivo,
indutor da perfeição vigente,
por onde permaneço.

Partilha da água,
que tilinta no seu correr
sem apetrechos potenciadores
de quaisquer limites ou tendências,
numa recriação contínua,
inovadora e persistente,
no seu jovial cortejo apaziguante.

Partilha da luz,
discernente que me rodeia,
desde o aclarar de cada manhã
até ao baixar da última noite,
disseminação das resistências,
por tantas e tantas jornadas,
onde sobrevivem as razões.

Partilha do sol,
vitalizador de conformidades,
revigorando plenos encaixes,
num soltar de ambiguidades,
por onde aviltam os salutares
raios da sua clarividência,
como anestésico para a demora.

Partilha do ar,
invasor da necessidade,
apoiante entre o desenlace
e o questionar fortalecedor,
onde respiram os múltiplos poros,
circundantes aos caminhos,
entre os extremos do labor e da diversão.

Partilha da demora,
que se sente a cada espera,
nos minutos que a estabelecem,
num esmiuçar consecutivo
sem contemplação aparente,
das conjecturas perdidas,
que se enraízam e nos desfalecem.

Partilha da palavra,
que quase tudo identifica
num apelativo rigor sem ameias,
regurgitando novas ideias
e definindo outros balanços,
que nos prendem a tantos passos
jamais concretizados.

António MR Martins

domingo, 7 de agosto de 2011

Inauguração da exposição de fotografias "Macau, um ano em vinte fotografias", de Gonçalo Lobo Pinheiro. Dia 19 de Agosto de 2011, pelas 22H00, no Amor de Biscoito, em Ansião (distrito de Leiria).



A exposição fotográfica "Macau, um ano em vinte fotografias", de Gonçalo Lobo Pinheiro, terá a sua inauguração a 19 de Agosto, em Ansião, num belíssimo local, onde sabe bem estar, beber, comer e confraternizar: Amor de Biscoito, que tão bem sabe receber a cultura. Será pelas 22 horas, desse dia, que tudo começará e assim permanecerá até 10 de Setembro de 2011. Na inauguração terá a oportunidade de conversar com o autor.


Se puder, apareça. Traga consigo mais amigos.
Serão todos bem vindos! 

A Mulher


Se é clara a luz desta vermelha margem
é porque dela se ergue uma figura nua
e o silêncio é recente e todavia antigo
enquanto se penteia na sombra da folhagem.
Que longe é ver tão perto o centro da frescura

e as linhas calmas e as brisas sossegadas!
O que ela pensa é só vagar, um ser só espaço
que no umbigo principia e fulge em transparência.
Numa deriva imóvel, o seu hálito é o tempo
que em espiral circula ao ritmo da origem.

Ela é a amante que concebe o ser no seu ouvido, na corola
do vento. Osmose branca, embriaguez vertiginosa.
O seu sorriso é a distância fluida, a subtileza do ar.
Quase dorme no suave clamor e se dissipa
e nasce do esquecimento como um sopro indivisível.

António Ramos Rosa, in "Volante Verde"

Rosto violentado e dorido


Te batem as ondas nos olhos,
lágrimas te molham o rosto,
tal te impedissem escolhos
de saborear o bom mosto.

Numa rudeza desconforme
te abatem tanta virtude,
o imo em pranto não dorme
e teu rosto perde quietude.

Te violentam e mal torces
a razão entre fundamentos,
mulher por magnificência.

Sentes-te trapo no que forces
e te deixam sem alimentos,
com tamanha violência.


António MR Martins

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sexta-feira, 5 de agosto de 2011

O fim da noite


A nossa história é simples: somos
neste momento todo o amor na terra
e nada mais importa, senão
o que sou, verdade em ti,
o que és, verdade em mim.
Por isso este poema talvez não seja
mais que um silêncio pela noite,
nem verso, nem prosa, só
uma oração ao deus desconhecido.

Não é talvez senão o teu olhar,
e tua esquiva mágoa,
o teu riso e tuas lágrimas.
E o apelo dentro de mim
ao milagre de nos querermos,
com a mágoa e com o riso,
- e teu olhar que vê em mim.

Não sei pedir, sei só esperar.
Mas já houve o milagre. Estava
agora comigo ao longo das ruas, que antes
eram só casas de pálpebras cerradas.
Estava no silêncio, que antes
era mortal.

E tu, sem eu saber, estavas comigo.
E sem eu saber de súbito na treva
buliram asas
e sem eu saber era já dia.

Adolfo Casais Monteiro

In Poesias completas, Lisboa: Portugália, 1969, p. 35, 285, 314-5.

Xadrez sem tabuleiro


As pedras se indispuseram
com elegância fingida
e nunca mais se detiveram
numa reclamação sofrida.

A torre pelo horizonte
vislumbra o belo cavalo,
os peões sentem-se a monte,
da dama levam um estalo.

O rei fica pela gravura
numa enorme devassidão,
que o bispo sempre ignora.

Disputam-se pela bravura
sem fazer táctica ou sermão
e o xeque-mate se aflora.


António MR Martins

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