domingo, 30 de agosto de 2020

Inesperadas partidas


Imagem na net.




O cerco da maldição
me aperta por momentos
o ser
pela infâmia do descabido
e inesperado acontecer.

Os destinos são imprevisíveis
e incontornáveis
pelas desavenças imperceptíveis
e que nunca são visíveis.

Não podemos reprovar
o sentido das coisas
nem penitenciar seu desenrolar
mas há tanto suceder
tão difícil de amparar.

A resistência
é um atrito ao destino
a recordação
imagem da memória
a arrogância
um desenlevo de quem não tem tino
o perecer
o esquecer da última história.

Nestes dias
o resistir me ofusca o lembrar
do escorreito discernir
e do inesperado partir
da simples esperança.

António MR Martins

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

rosa oliveira


rosa oliveira, imagem na net.




nostos

é difícil regressar a casa
o herói não tem cheta
nem uma chávena de chá pode pedir
sofre uma miserável hora do almoço no parque
estômago vazio
ventre sugado para dentro
a cabeça quer soltar-se do pescoço
o herói vive em constante anonimato transcendental
estamos presos em nós
os outros são ambiente

rosa oliveira, in “errático”, página 31, edições Tinta da China, Agosto de 2020.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

José Luís Outono


José Luís Outono, imagem na net.




Paralaxe

Duas rectas de visão, com dois sentidos de definição.
Quantas vezes o conveniente para aligeirar ou ignorar
o erro
é o analgésico da confusão fundamentada, mas sem
cura garantida
porque interesseira.
Paralaxe, a possibilidade de dizer certo por olhares
imprecisos,
coisa pouca dizem os defensores de certos
ângulos.
Ângulos sintonizados ou não, nas demandas de
cadernos
ditos apelativos,
nos jogos de engate fácil.
Pequena distracção avaliadora nas conformidades
do despacho, face aos argumentos apresentados,
onde a causa a esgrimir neste momento
é o sentir que advoga apenas…
“o venha a nós”.

José Luís Outono, in “Mares encrespados”, página 46, edições poética edições, Junho de 2019.  

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Veemente atitude


Imagem na net.




As partículas
das muralhas da vida
juntam-se irregularmente
de forma inadvertida,
não obedecem
ao contingente fingido
que nos adorna a mente
e regula a intensidade da razão.

Os meios
que entabulam a estrutura
do pensamento
são difíceis de obter
e avaliam-se outros tormentos
que alteram a compostura
do acautelar de toda a espera.

A ternura
branqueia toda a bravura
e todos os que se aturam
se deixam melindrar pela lisura
dos devidos comportamentos.

Consegue-se por fim concretizar
o conceito daquilo
que se poderá alcançar
quase
verdadeiramente.

António MR Martins  

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Yolanda Villar Menezes

 

Yolanda Villar Menezes, imagem na net.


jardim de água

 

é fogo que

me consome

é luz

que jamais dorme.

corola de

minha flor

é verde,

eu sou jardim!

 

é água que

me percorre

onde quero

aqui, ali

de qualquer modo

assim

como eu gosto,

e eu sou rio, de ti!

 

Yolanda Villar Menezes, in “Orvalhos do meu cacimbo”, página 74, edições Grácio Editor, Março de 2015.


quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Katarina Lavmel





                                                                       
Katarina Lavmel, imagem na net

[Nas falésias do Algarve]

Nas falésias do Algarve respiramos – fundo
a violência do vento são asas
e os sonhos já não são mais uma onda
deixo-me levar pelo oceano e por ti
sem mapa sem bússola nem consenso nem bóia

já não contamos as lanternas no céu –
mesmo para as gaivotas perdidas a noite não é estranha
navegamos com o triunfo de uma vela cheia
empurrados para dentro da neblina da manhã

por trás das rochas do pensamento há remoinhos
dióxido de carbono em demasia –
os ambientalistas vão capturar-nos (sem piedade)
por causa deste fogo que arde como incêndio
imoderado nos nossos corações

Katarina Lavmel, in “Anturaz / Entourage”, página 8 (tradução de Gabriel Borowski), edições FONT, 2019.

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Lília Tavares




Lília Tavares, imagem na net.




[Há mulheres que com lisura se lavam]

 

Há mulheres que com lisura se lavam, contornando

ao de leve pequenas ilhas no corpo. Aspiram odores antigos,

cerram os olhos como se por acaso

se perdessem em memórias do lado de lá da pele.

Com lágrimas limpas se expiam nas reentrâncias, conchas

seladas para sempre onde guardam velado o sal das marés.

Nasce nelas um prenúncio de noite. A linfa do corpo

é etérea como o perfume antigo da ternura.

 

Lília Tavares, in “Bailarinas de corda”, página 41, edições poética edições, Outubro de 2019.   



segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Ana Acto


Ana Acto, imagem na net.





Vazio

Pulsa-me nas veias o sangue quente
Neste corpo ausente de sentidos e de vida
Vazio, num vagar dormente de quem já não sente
Nu, despido, frio

De que me valem estes braços que me pendem
no regaço, desistentes, cansados do adeus, a despedida
Ou estes lábios, outrora cheios, rosados dos beijos
que, mudo, lhes plantavas, agora selados, cerrados…

De que me valem… de que lhes valho
 Se em mim já não te trago…

Ana Acto, in “Nua”, página 40, edições In-Finita, Abril 2020.