sábado, 28 de janeiro de 2017

António Duarte Mil-Homens


António Duarte Mil-Homens



Navegarei um dia
numa urna final,
não num mar de prantos
- morrer é tão natural -
mas numa enseada de espantos,
rumo às chamas libertantes
das memórias do futuro
no espelho do que fui antes.
Não me chorem, antes lembrem,
se algo houver a lembrar,
colham histórias nas estantes
de quem procurei amar…


António Duarte Mil-Homens, in “Vida ou Morte duma Esperança Anunciada”, página 28, edição do Autor, Macau, 2010.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

À Biblioteca Sir Robert Ho Lung


Biblioteca Sir Robert Ho Lung, em Macau. Foto de António Martins



Os jardins prestavam vassalagem
aos passos dos visitantes,
em adormecida contemplação.

Os bambús predominavam com elegância,
num galanteio sem arestas
preconceituosas.

Numa das mesas do exterior
um desconhecido jogo 
atiçava a pele de jovens alunos, 
em ócio de final de semana. 

Enquanto os livros descansavam
no retiro compensador das palavras,
acomodados em estantes dos sonhos,
nos seus conteúdos
repousavam tantas vidas inquietas.

No interior o silêncio era mestre
e nem as compenetradas mentes
desferiam um suficiente sopro
que possibilitasse ouvir
qualquer folha em movimento.

Ao deixar este magnífico palco
um grito de alegria soa em cada ímo
e um sorriso nos faz seguir em frente,
na saudade de tantos cheiros misturados.


António MR Martins

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Camilo Pessanha


Camilo Pessanha (1867-1926)



ESTÁTUA


Cansei-me de tentar o teu segredo:
No teu olhar sem cor, frio escalpelo,
O meu olhar quebrei, a debatê-lo,
Como a onda na crista dum rochedo.

Segredo dessa alma e meu degredo
E minha obsessão! Para bebê-lo
Fui teu lábio oscular, num pesadelo,
Por noites de pavor, cheio de medo.

E o meu ósculo ardente, alucinado,
Esfriou sobre o mármore correto
Desse entreaberto lábio gelado…

Desse lábio de mármore, discreto,
Severo como um túmulo fechado,
Sereno como um pélago quieto.


Camilo Pessanha (Coimbra, 1867-Macau, 1926), in “Clepsidra”, página 16, edição bilingue, com tradução de Yao Feng, Instituto Internacional de Macau, 2016.   

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

À Deusa A Má


Monumento à Deusa A Má, em Coloane, Macau.
Foto de António Martins




Ergueram-te,
de modo soberbo,
na divindade do taoísmo,
observando Coloane,
onde os traços crescem gigantescos,
ali mesmo defronte,
e te enevoam o horizonte.

Às tuas costas, a praia
onde deixaste de proteger
navegantes e pescadores,
já que os mercadores
se mostram, agora,
arredios destas paragens.

Ligam-te às origens de Macau:
Má Chou, Tui Han ou Néong-Má,
te enredam nesse sentido,
pelas metáforas, mais longínquas,
das simples alcunhas electivas
ou na vastidão dos teus pseudónimos.

A tua imagem “Mãe”,
essa, mantém-se intacta
em pleno realce no topo 
da ilha de Coloane.


António MR Martins