quinta-feira, 26 de abril de 2018

Partículas da vida


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Sei de ti,
da tua água, do teu corpo
e dos muros que te sustêm.

A cada ondulação da pele
soa o gemido de uma melodia
e um canto me delicia e me entontece.

No palanque das tuas águas
respira-se o futuro
e cada vez que te olho
solto sorrisos de esperança.

Abres as portas esquecidas
das grades de todos os medos
e elevas
o adjectivo que te qualifica.

Um sopro emerge
e traz-me à lembrança
tantas imagens passadas
que o tempo soube guardar.

Depois,
o vento sopra num todo
e baralha-se-me a saudade
neste condensar de tantas memórias.

 
António MR Martins

quarta-feira, 25 de abril de 2018

José Luís Outono


José Luís Outono, imagem da net.




Acasos apenas

acasos de um respirar entre carícias
de sóis fugidios e tectos de algodão
escritos como nuvens taciturnas
cinzentos calmantes e densidades
nunca pacíficas

acasos de um passar entre verdes constantes
de jardins ainda não taxados pela ira da moeda
e liberdades de encontros marcados
com a sempre curiosa lente e lado perpétuo
do registo

acasos de uma primavera ansiada
após os enclaves de gritos pluviais
e frios bastantes nas vontades respiratórias
entre sorrisos ao ar livre
decotados

acasos apenas

 
José Luís Outono, in “Três Mares”, página 32, edições Insubmisso Rubor, Outubro de 2016.  

quarta-feira, 11 de abril de 2018

Proibitivos carreiros


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Por entre os vales do medo
se acorrentam as feridas
da podridão, longe da cura.
São resquícios das secas fontes,
onde não surgiram nascentes
e demais estratagemas.

Resta um fio de uma corrente
que não seca, por desprazer,
continuando por diante
em conflito com tanta dor,
interiorizando com o mal
a sua única solução.

Há um patamar atingido
por mera coincidência
entre as linhas do pavor,
que nada tende a melhorar
entre as origens e os destinos
dos caminhos percorridos.

O pensamento se desprende
perante os carreiros impuros
que nos tolhem a mente
e a conclusão nefasta
nos invade o interior
com tanto, ainda, por surgir.

António MR Martins

António Bondoso


António Bondoso, imagem da net.





[Para lá das pontes e dos prédios]

Para lá das pontes e dos prédios
há uma Ilha Verde
de desejo
refúgio semanal de alguns tédios
também procura do ensejo
para encontros do acaso
e por acaso
ainda uma ilha com remédios.
Refúgio de piratas
noutros séculos
nela habitam imagens de outros sítios
grata recordação
de um tempo de vida noutros trópicos.

António Bondoso, in “em Macau por acaso”, página 68, edição do autor, Novembro de 1999.

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Renascer


Imagem da net.




Há uma frieza
espontânea,
que antecede
a estática conformação,
num apelo indelével
no começo de cada verso.

Estreita
o muro que nos separa,
na nossa fragilidade
do ser.

Não mais seremos como fomos,
e o futuro
será a surpresa
de cada amanhecer.

António MR Martins

Vasco Graça Moura


Vasco Graça Moura (1942-2014). Imagem da net.





a passagem do tempo

o tempo passa e não me preocupa:
nem traz angústia especial, vexame,
fraqueza ou solidão, nem faço exame
de esquadrinhar a consciência à lupa.

teve uns momentos altos e outros baixos.
vieram, de mistura com mais brancas
e umas maneiras de dizer mais francas
e outras fascinações, outros despachos.

e sem cuidar de mim, creio gerir-me
entre o que se perdeu e o que me resta,
ter o gozo do acaso, arrastar firme,
distinguir o que presta e o que não presta.

escrever de sabores, dissabores,
e ser mais um entre outros sabedores.

Vasco Graça Moura (1942-2014), in “Uma carta no inverno”, página 24, edições Quetzal Editores, 1997.

sexta-feira, 6 de abril de 2018

Profundidade nocturna


Imagem da net.




Na cidade as luzes já brilham. É a noite.
Os movimentos espartilham
encontros e desencontros,
por entre os passos
mais fecundos.
As vozes vão-se tornando
inaudíveis,
ante o silêncio
da prece esquecida
e o chão estremece os sentidos.

Os traços dos caminhos
distanciam-se
e ouve-se um assobio
ao virar da esquina
de tantas vidas.
O vento afugenta
os vestígios do pensamento.

Permanecem
as luzes no seu brilho,
intenso,
quase duradouro.
As ruas tornam-se vazias
de quase tudo.
As pedras
deixam de ser pisadas
e magoadas
no seu acolhimento.

A madrugada
arranca para todos os desvarios
e um copo vazio,
numa mão trémula,
espera o líquido recheio
da nova manhã.

António MR Martins

Ruy Cinatti


Ruy Cinatti (1915-1986). Imagem da net.






Elegia

Sou rio que passa.
Vento.
Sou oração.
Sou alguém no céu.

Tardo sempre mais
a configurar-me
porque sempre sei
como retratar-me.

O retrato fica.
A imagem vai-se,
não sei se no vento,
se na oração.

Sou no firmamento
imagem dum rio.
Sou no meu retrato
um homem a menos.

Ruy Cinatti (1915-1986), in “Tempo da Cidade”, página 62, edições Editorial Presença, colecção forma, n.o 33, Outubro de 1996.