quinta-feira, 31 de março de 2022

Enganar as verdades

 

Guerra na Ucrânia (imagem na net).


Neste sujo soalho se evoca
a anuência vulgar do resistir,
pelo sentido lato que provoca
a singela decência do existir.

Pelo fútil mérito das valências
verdade lapso da reles obtenção,
se definem as fracas prudências
querendo viver com a sã rectidão.

Os fins são rudemente conseguidos
fazem incoerentes ganhos obtidos
sentença mórbida da heresia.

Deturpando o elementar direito
tido no senso comum em defeito
no ensaio da sórdida cobardia.

 

António MR Martins


terça-feira, 29 de março de 2022

Josefa de Maltezinho

Capa do livro "Uma garfada de sol no 
umbigo", de Josefa de Maltezinho.

 

MAR DE ROSAS
 
Pergunto-me que mar de rosas existe
nesta coisa esférica de ceifar o riso pela raiz;
neste logro que dá pérolas a porcos
como fósforos a velas sem pavio
 
Há quem diga que nenhum.
Mar? só o céu infinito na saia de pregas
em chama por estrear;
rosas? só o canteiro na blusa
muito antes de o amor lhe desbotar os verdes
 
Eu digo que a pele das rosas tem o hábito
de trazer espinhos por partir no ventre,
e que a vida é como um pano de boa estirpe;
 
no melhor dela cai a nódoa.
 
 
Josefa de Maltezinho, in “Uma garfada de sol no umbigo”, página19, edições Editora Exclamação, Outubro de 2021.    

quarta-feira, 23 de março de 2022

Recordando...

 

Gastão Cruz
(1941-2022)
 
Gastão Cruz. Imagem na net.

 

A FORMA DO AMOR
 
Uma vez mais acende-se a renúncia
como um caudal nocturno arrastando as palavras
despertos repetimos a essa luz os sons
agudos que tínhamos cantado
 
A noite não será igual a tantas outras
nem decerto o amor tem a forma da espada
porém tudo é idêntico ao fotograma estático
de súbito retido no correr das imagens
 
Parámos nesse ponto em que o choro da noite
perdeu a consistência e se desfez em mármore
o amor teve a forma que as palavras
não podem dar à hora da paragem da alma
 
 
Gastão Cruz, in “A moeda do tempo”, página 15, edições Assírio & Alvim, Outubro de 2006.

segunda-feira, 21 de março de 2022

Dia Mundial da Poesia

Imagem da net.

 

O poema é vida
 
 
Há um cheiro a poesia
no aroma da tua voz,
um perfume que irradia
de forma doce ou atroz
 
a razão de cada verso
faz suprir qualquer tristeza,
o sentido no reverso
no poema da firmeza.
 
Há abraços da poesia
neste dia que se afirma,
gentileza e cortesia
duma palavra sem rima
 
o cansaço que não cansa
metáfora esquecida,
num verso que não descansa
no seu caminho na vida.
 
Há um poema intenso
que não se ousa desvendar,
com um enredo propenso
à simples forma de amar.
 
pela palavra saudada
se ergue toda a poesia,
sendo bem ou mal-amada
na verdade ou fantasia.
 
 
António MR Martins
 
Dia Mundial da Poesia
21 de Março de 2022


segunda-feira, 14 de março de 2022

Infinita batalha

 

Imagem na net.


Na palidez em que sentes teu imo
o susto esmorece teu sustento,
raiz prenhe de tanto desânimo
onde não encontras fulcral alento.
 
Filtras tua obstinada procura
no vazio registo infundado,
que te causa tanta reles secura
nesse solicitar só e frustrado.
 
Nunca te renegas à rija luta,
pelos meandros dessa força bruta
e por todos os teus juntos pedaços.
 
Todos te acham um filho da puta,
mas ages sempre de forma astuta
e jamais ousas baixar os braços.
 
 
António MR Martins

domingo, 13 de março de 2022

Samarone Lima

 

Capa do livro "O Aquário Desenterrado", 
de Samarone Lima.


INSURREIÇÃO
 
 
Meu nascedouro foi ocupado
por insurgências.
 
Cresci a meu modo
sonâmbulo e desigual
arvorando-me desarmado
e, mesmo assim, cúmplice.
  
Na última parte dos desejos
pintei camisas manchadas
e bebi vinhos doces
tão amargos, porém.
 
Foram chuvas que me levaram
foram lágrimas que me lavaram
e segui
sentindo em cada talho
um pequeno desconforto.
 
Mas a madeira do meu corpo
não cresceu a tempo.
 
Ficou o ferro dos dentes
resultou a pedra nos olhos.
 
Tecerei em silêncio
a forma que me devolva
o nascedouro ocupado.
 
 
Samarone Lima (Crato, Ceará, Brasil), in “O Aquário Desenterrado”, páginas 68 e 69, colecção Os Contemporâneos, edições Confraria do Vento, Rio de Janeiro (Brasil), 2013.

segunda-feira, 7 de março de 2022

batista_oliveira

Capa do livro "trazias no teu corpo 
a volúpia dos sentidos", de batista_oliveira

 

sinfonia oculta
 
 
trazias   na semântica dos lábios
a cadência florida dos teus sonhos
a candura dos teus olhos risonhos
esparzindo um sorriso aberto e lábil.
 
as palavras cantavam versos sábios
com sabor às amoras e medronhos
(colhidos no verão   calor medonho!)
deleite prà secura dos teus lábios.
 
trazias   nos teus lábios   a semântica
de um dia de sorrisos de verão
na tua doce voz soava um cântico
 
de pássaros alados   sinfonia
de mil vozes   gravadas na canção
que teu peito   em silêncio   me escondia.
 
 
batista_oliveira, in “trazias no teu corpo a volúpia dos sentidos”, página 20, edições Poesia impossível, 2021.

quinta-feira, 3 de março de 2022

A bala abala

 

Ucrânia, guerra. Imagem na net.


Uma bala cumpre o caminho do seu disparo
o insólito percurso da dor e da perda
a razão inexistente
a força indescritível
num destino programado
não o proveniente da existência sonhada.
 
Uma bala carrasca de um cumprimento salutar
não de um crime
não de qualquer delinquência
sim na rudez implementada com rancor
sem preconceito e conceito
num total devaneio
mas com dor… sempre dor… muita dor.
 
Uma bala que se entranha num peito
de qualquer resistência
num qualquer peito dado a ela
sem quaisquer reticências
e o corpo cai
a casa cai
e toda a vida em redor se fere intensamente.
 
Há uma lágrima de uma criança
um brinquedo que se solta das mãos de outra
uma chama enorme entre o gelo
após um estrondo bem profundo
que ecoa até longe… muito longe
e não há fôlego para mais nada.
 
Depois caem outros corpos
em mutilações doentias e constantes
num sofrimento inexplicável
sem sentido
sem rodeios
sem contemplações.
 
Tudo eclode na passagem de cada bala
e cada bala passa
penetra e ultrapassa a vida
a criação
a história
que nunca mais será a mesma.
 
Tombam todos os alicerces
com um simples clique
pelo frio sangue
com o aperto do gatilho
e a máquina não pára
avassalando a Humanidade
a total sangue frio.
 
Depois ficam os escombros
a incompreensão plena
a dor infinita que a bala deixou
e faltam as palavras
para escrever o que sentimos!
 
 
António MR Martins
 
Depois de ouvir, sentir e ver imagens da entrada das tropas russas pelas terras ucranianas, numa invasão sem explicação e sem limites, Março de 2022.