segunda-feira, 27 de abril de 2020

Instantes de saudade


Lisboa antiga, Cais do Sodré. Imagem na net.



Seca o sangue na Terra
e o suor transpira alternâncias
entre o desespero
que acicata os imos.

Então o esplendor desperta
uma miscelânea de emoções
de um tamanho imenso
equiparado à saudade.

António MR Martins

Abril de 2020

domingo, 26 de abril de 2020

A última canção


Imagem na net.



Navegam em mim estórias
palavras mansas
memórias
outras agrestes
longínquas
neste memorando liberto
numa gaiola sem portas.

Oiço ligeiros gritos
gemidos descompostos
alívios e pruridos amorfos
silêncios perturbadores
na eloquência dos mortos

e os vivos permanecem tolhidos
no estreito lugar da voz
em constante apelo 
por todos nós.

Sosseguem mentes doentes
acolhidas em suas moradas
e todos os seus parentes
que a vida jamais acaba

de paragem em paragem
num roteiro desconhecido
talvez irracional
neste mundo aflito
que não encontra viragem
e corre desmedido
para ultimar a viagem.

António MR Martins

Abril de 2020

sábado, 25 de abril de 2020

Amarras inventadas


Imagem na net.



Daqui vejo a Torre de Macau
as pontes e o delta do Rio das Pérolas
os casinos da cidade 
e a azáfama para um novo aterro.

Daqui vejo o céu, às vezes,
as nuvens e a neblina
as luzes das noites turvas
e o brilhantismo de algumas límpidas.

Daqui vejo a cidade
outrora do Santo Nome de Deus
com todos os deuses
a protegerem o seu avançar na idade.

Daqui sinto a felicidade morna
dos trabalhos inacabados
a vida parada pelos cantos
onde os sorrisos moravam.

Daqui há meses te escapo
raiz do medo e da peçonha
proveito de toda a vergonha
de que enferma a Humanidade.

António MR Martins 

Abril de 2020

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Miguel de Senna Fernandes


Miguel de Senna Fernandes, imagem na net.




E fica assim

E fica assim
É final pra mim
Já não tenho nada
Mas nada mais importa

E fica assim
Ponto zero pra mim
É escolher de novo
Sem agradar o povo

Se vou viver?
Pois claro que sim
Nem que fique na lama
Que estar na tua cama

Se vou viver, queres saber?
Prometo que sim
Nem que fique nua
Como pra o mundo vim

Prefiro assim
Tu longe de mim
Que me chames de tudo
Mas dito o meu futuro

(declamado)
Não sou mulher do teu pedestal
Que pode cair de um vendaval
Sou mulher com pés firmes na terra
De coração rubro e de alma leal
Para onde vou não interessa.
Ainda que nada mereça,
Sou mulher, prefiro morrer a estar presa

Se vou viver?
Pois claro que sim
Nem que fique na lama
Que estar na tua cama

Se vou viver, queres saber?
Prometo que sim
Se isto é destino
Então que seja assim!

Miguel de Senna Fernandes, in “RAEM 20 Anos”, Poema 16 (construído para ser musicado e que já o tinha sido), ilustrado por Elisa Vilaça, edições Casa de Portugal em Macau, Novembro de 2019.

domingo, 19 de abril de 2020

Deserto de ideias


Imagem na net.



Observo a cidade deserta
onde caminho mascarado
pelas ruas, becos e travessas
plenas dum humano-vazio.

Até as borboletas
já surgem no espaço cimentado
voando junto às janelas
ladrilhadas de milenares costumes
e fechadas a todos os tropeções inexistentes.

É tenebroso este silêncio
que se aglomera noite dentro

que traz consigo
um ar que mais nos privilegia
na suavidade dum respirar profundo
muito mais satisfatório.

Junto às águas do lago Nam Van,
onde se avista o delta do Rio das Pérolas
já as aves são inúmeras
deambulando
entre muitas das espécies da região.

O confinamento não é simulacro
é intensa realidade.

A espera absorve-nos os dias
e a demora persiste em continuar alheia
a todos os nossos propósitos
neste agridoce condicionamento.

António MR Martins

Abril de 2020

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Fiquem em casa


Imagem na net.



Já a palavra ficar ecoa
entre os dentes descerrados
pelas ondas da precisão.

Tardia ficou a querença
desflorada de preconceitos
antítese do cumprimento
onde desagregaram sentidos
num esbanjar impertinente
pela liberdade que cabia ao outro.

É que a minha liberdade total termina
onde começa a do meu semelhante.

Há quem o peça encarecidamente
numa aflição sem limites
por favor ou sem ele.

Com a calma que ressumo
desta forma derradeira
vos suplico:
- fiquem em casa.

É melhor para si
para mim
e para todos os outros.

E se tivermos de desfraldar a bandeira
que seja a da liberdade
entre alegria e sorrisos
fortalecendo a esperança no amanhã
de toda a Humanidade.

António MR Martins

Abril de 2020

terça-feira, 14 de abril de 2020

Sérgio Perez


Sérgio Perez, imagem na net.




Talvez um dia

Só para te dizer
Que o mundo parou
Quando te vi pela primeira vez
Naquele dia de chuva
Na paragem da praia grande.

Os teus olhos perdiam-se
Mergulhados nos neons das casas de penhores
Quando passávamos por Pequim,
A caminho da Flor do Lótus.

Saíste no Dragão Dourado
A ritmo apressado,
Mergulhada na multidão
Que entrava enfeitiçada

Talvez um dia o teu olhar
Perdido nos neons de Pequim,
Me encontre pela Flor do Lótus, 
Antes de chegar à boca do dragão

Sérgio Perez, in “RAEM 20 Anos”, Poema 19, edição Casa de Portugal em Macau, Novembro de 2019.

sábado, 11 de abril de 2020

A certeza de sermos menos que pouco


Imagem na net.



Quando a febre tórrida
se acerca dos corpos sensíveis
sem causa aparente
menor ou maior
os índices de insegurança
atormentam os âmagos
tenuemente vencidos.

Quando o destilar tossico
efervesce o dilema fronteiriço
apregoando sons irritantes
nos limites do desassossego
e funde-se com o desconforto
muscular e anímico.

Quando as nuvens
deixam de ser passageiras
e permanecem peganhosas
abafam os limites respiratórios
desgastando a proeza da vida
sem quaisquer preconceitos.

Quando a espera passa a ser menor
que a partida assegurada 

tudo se desmorona
antecipando todas as eutanásias 
sem relatórios pré-concebidos.  

António MR Martins

Abril de 2020

domingo, 5 de abril de 2020

Yao Feng




Yao Feng, imagem na net.



Em busca da luz

Volta a luz à lâmpada
e de súbito está de novo escuro
quem prende lá fora a falena-da-noite
e a ensina a aceitar a obscuridade?

Depois de um treino sem fim
a falena de asas rasgadas
já não sabe voar
arrasta-se no crepúsculo
rasteja lenta como um caracol
a caminho da luz.

Yao Feng, in “RAEM 20 Anos”, Poema 20, edições Casa de Portugal em Macau, Novembro de 2019.