domingo, 29 de janeiro de 2012

Três poemas de Prates Miguel...


Do seu primeiro livro "Marés Vivas", edição de autor, Janeiro de 1979.

1

Nem sempre a palavra
Lavra
Semeia
E planta
O que quer
O dono da garganta.

(1975)


16

Na última carta que a viúva recebeu da prisão

Ele dizia:

- Ensina a criança a apedrejar o sol

Até nascer para todos.

(1973)


29

(Também não sei o que é o mar)
- Eugénio de Andrade -

Também não sei explicar
- E quem sabe, afinal? -
Donde vêm a água e o sal
Que são o mar.
Já ouvi dizer, porém,
A homens sabedores
Que o mar é armazém
Do suor dos pescadores.
E quando as peixeiras choram
O mar fica salgado e maior
Por causa da mistura
Das lágrimas com o suor

(1977)


Prates Miguel

À beira do declínio

Sinto a tenaz usurpadora
que nos prende os dedos
das mãos esquecidas,
não nos deixando separar seus intentos.

Sinto sua colheita avassaladora
e a inquietude,
que trespassa o desiderato
da simples conformação.

Sinto o talhar
dum revestimento
que nos oprime as gargantas,
numa secura infinda,
sem mácula.

Sinto o desprender
do entendimento
e a única saída, para um poiso de luz,
se desintegra e se esfuma,
sem retrocesso possível.

Há um ventre que se esvai
a cada minuto que passa.

As hienas da vil raiva
e os abutres sugadores
amarfanham tudo,
não perdendo pela demora.

O declínio
abeira-se-nos de todos os sentidos.


António MR Martins

Apresentação dos livros "Máscara da Luz", de António Mr Martins e "Memória das Cidades", de Vítor Cintra, em Alvaiázere, na Biblioteca Municipal - 27 de Janeiro de 2012


Na mesa, da esquerda para a direita:
O poeta Xavier Zarco, que apresentou obra e autor de "Memória das Cidades",
Vítor Cintra, autor dessa obra,
Agostinho Gomes, Vereador do Pelouro da Cultura, da C. M. Alvaiázere,
António MR Martins, autor de "Máscara da Luz" e
o escritor Prates Miguel, que apresentou essa obra e respectivo autor.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Quântico


Um canto alado que cresça na cidade
E reduza as circunstâncias a pedaços
Que seja cântico negro ou cor da idade
Da quântica de ironias e cansaços

Que atravesse asfalto cimento e sinais
Sombra através dos dias de entremeses
Porta travessa das partes capitais
Pedras travestis de lares onde por vezes

Com vãos silêncios se disfarçam gritos
Contendo até que as paredes se desfaçam
Contratempos por vir corpos aflitos
Contrastes vagas presenças que ameaçam

Que se derrame nas praças apressadas
Nos derradeiros jardins habitáveis
Sobre as derrotas do hoje alimentadas
Na derrocada dos sonhos improváveis

Que se projecte nos olhos macerados
Revelando-lhes o brilho de uma alma
Redescoberta por gestos inesperados
Vindos do longe de uma antiga calma

E pode ser que as árvores se espantem
Que a cidade por fim erga a cabeça
Que reinvente pássaros que cantem
E algures na noite um coração estremeça

Mário Domingos

A minha singela homenagem ao poeta, e ao homem que hoje nos deixa. Até lá!

Mútua linguagem

Da seiva em que te aprendo
se enredam tantos clamores,
o meu olhar em ti suspendo
porque enormes teus valores.

Sacudo o pó do queixume
que empertiga a baixeza,
contigo acendo o lume
incentivando a certeza.

Mantenhamos ordem na casa
produtora da memória,
que recordamos de entre nós.

E no calor vindo da brasa
contemos a velha história,
em dueto com a nossa voz.


António MR Martins

Apresentação dos livros "Máscara da Luz", de António MR Martins e "Memória das Cidades", de Vítor Cintra, em Alvaiázere, na Biblioteca Municipal, 27 de Janeiro, 21 horas

O Município de Alvaiázere, através da Biblioteca Municipal, os autores António MR Martins e Vítor Cintra, e a Temas Originais têm o prazer de o convidar a estar presente na sessão de apresentação dos livros “Máscara da Luz” e “Memória das Cidades” a ter lugar na Biblioteca Municipal de Alvaiázere, sita na Avenida António José Ferreira, em Alvaiázere, no próximo dia 27 de Janeiro, pelas 21:00.

Obra e autores serão apresentados pelo escritor Prates Miguel e pelo poeta Xavier Zarco, respectivamente.



Apareçam neste belo local da cultura e de empatia com as palavras, em Alvaiázere.

Serão bem recebidos.

Meu abraço

A Festa do Silêncio


Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.

Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga. A brancura é o caminho.
Surpresa e não surpresa: a simples respiração.
Relações, variações, nada mais. Nada se cria.
Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.

Nada é inacessível no silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore em mim respira.
Vivo na delícia nua da inocência aberta.

António Ramos Rosa

Sentença benfazeja

Quando o sol se esconde
e a lua nos aparece
há um caminho perdido
onde não te posso encontrar.
O efémero tempo da espera
e da inquietação
que ramifica pensamentos
e ideias de desesperar.

Chega então o frio
duradoiro
no secreto de cada noite
onde o silêncio se apaga
na sombra dos ladrares famintos
latejando a cada esquina
das ruas gélidas ao abandono.

É aqui que o afago do sonho
e do corpo que me rodeia
germinam em paralelo
num relevante conforto
que nos aquece até ser dia.

E nesse sublime ponto
onde fulminam as memórias
tudo volta a acontecer.

Outra vez!


António MR Martins

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Desencontro


Que língua estrangeira é esta
que me roça a flor do ouvido,
um vozear sem sentido
que nenhum sentido empresta?
Sussuro de vago tom,
reminiscência de esfinge,
voz que se julga, ou se finge
sentindo, e é apenas som.

Contracenamos por gestos,
por sorrisos, por olhares,
rodeios protocolares,
cumprimentos indigestos,
firmes aperto de mão,
passeios de braço dado,
mas por som articulado,
por palavras, isso não.
Antes morrer atolado
na mais negra solidão.

António Gedeão

Pensamentos congelados

E este frio cortante
Que a cada noite se fortalece
Devassa-nos a concentração

O sentido das palavras
Em vãs exultações
Já não urde quaisquer perspectivas

E o frio mais empobrece
A resistência comum
Regelando tantos corpos amorfos

Alguns movimentos
Sacodem o mau estar
E o estado latente
Em que essa congelação acontece

As palavras continuam
Sem apoio valorativo
E tudo se esfuma
Velozmente

A inocuidade estabelece
Os próximos condimentos
Sem tempero nem paladar

António MR Martins

sábado, 21 de janeiro de 2012

Os amantes sem dinheiro


Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.

Eugénio de Andrade

Limites


Pelos passos na noite fria
Onde a luz não retorna
E o som se confunde
Com a penumbra escondida

Se reclamam sentidos
De espectro inconsequente
No continuar do caminho
Pelo tempo de tanta espera

Há um limite para tudo

António MR Martins

Imagem da net

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

O futuro


Assolado por ondas de memórias
recolho à concha rude e ao colete
na ressaca de um passado rico em histórias
e na INCERTEZA de um presente de demente.

Fujo para o deserto,
lugar seguro onde a sede acabará por me matar.
Esperar ao sol, parece-me bom futuro
já que é incerta a hora de acabar.

Maria do Rosário Leal

mares esquecidos


cascos acometidos
ao mar da competência
onde navegaram clamores
e outras alternativas
com valentia e rigor

tripulações destemidas
na aura de tantas vitórias
denominadas descobertas
sendo algumas incertas
e outras nem tanto

restam os tempos deste modo
numa vulgaridade tamanha
onde nada mais se vislumbra
que acicate os novos botes
a ancorarem noutros portos

António MR Martins

imagem na net, Ivone Cheio de mares, joaquimevonio.com

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Bordar o momento


O voo,
Renascendo todas as pétalas,
Na aguarela da eternidade
Onde os barcos adormecem,
No pousio do mar.
Bordo bagas de cetim,
Nas mãos que talham o tempo
Acendendo o teu olhar,
Assim... tão cheio de amor.

Luís Ferreira

in livro "O céu também tem degraus", pág. 42, Esfera do Caos Editores, 2011

Até ao último som

Há um canto bem amargo
pela voz de um sofredor,
alheio a qualquer cargo
insuspeito por tanta dor.

Pelo soluçar da sua voz
se ferem tantos sentidos,
duma vida sempre atroz
e dos dias mal paridos.

Sua melodia inventada
desfere sons aziagos
na rudeza do seu estar.

A garganta maltratada
da saliva bebe tragos
enquanto puder cantar.

António MR Martins