quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Rui Rocha


Rui Rocha, foto do Jornal Tribuna de Macau (na net).



[todo o lugar é um lugar vazio]

 todo o lugar é um lugar vazio
nem as árvores nem as pessoas
farão menos vazios esses lugares

 o olhar de hoje será diferente
do olhar de amanhã
como dos dias que se seguem

 contudo tudo continuará vazio
tão vazio como a morte de um deus
que nunca existiu

 
Rui Rocha, in “Taotologias”, página 37, edições Editora Labirinto, colecção contramaré / 11, 2016.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Plena transformação


Em Ansião, foto de António Martins.




no desnudar da árvore
a transformação
da natureza inacabada.

os gestos arredondam-se
perante os extremos dos ramos
vividos
e as folhas sobrevoam
até à momentânea quietude dum chão
que jamais será permitida.

o vento impulsionará
cada esvoaçar circulante
das folhas perdidas
que se vão juntando
ao longo do muro da separação,
enquanto outras
voltarão à terra, virando estrume,
nesse conceito
de um transformar pleno.

há um sentido para todas as coisas
e a memória
permanecerá viva
a qualquer consequência
dos mais inusitados caminhos.

as imagens,
em qualquer âmbito,
darão sentido
à justificação desse mistério.

 
António MR Martins

sábado, 25 de novembro de 2017

Hoi An (Vietname)


Um das margens do Rio Thu Bom, em Hoi An.
Foto de António Martins.




nos teus velhos laços
da existência
caminham correntezas
de ânsias e melodias,
sob a vigília
das tuas paredes de antanho.

ante a serenidade
das águas, verde-opaco, do Thu Bon,
as tuas pontes testemunham
a passagem de milhares e milhares
de viajantes.

na paisagem
decorada com balões de tantas cores
existe um cheiro de gastronomia, a teu modo,
e os paladares ajeitam-se de forma consecutiva.

o calor traz-nos
o sabor dos corpos
e o louco excitar dos deuses
perde-se no tempo.

as motorizadas
surgem-nos de todos os lados
desenfreando êxtases,
perante as memórias desguarnecidas.

o arroz é companheiro da alma.

mesmo quando a natureza
age de forma louca
e te desalinha
dos teus preceitos desalinhados.

António MR Martins

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Inez Andrade Paes


Inez Andrade Paes, imagem da net.




FLORES ABERTAS

lembras-te da tarde
em que estavas adormecido junto ao cedro
com pedras castanhas a cobrir-te os pés
essas flores amarelas que saíam aqui e ali
eram as alegrias que teus dedos faziam mexer
por baixo das agonias
que teu coração não quis deixar transparecer

diz-me tens saudades daquele lugar?
onde as árvores cantam
e os pássaros param para ouvir
tudo ali é diferente porque de amor se quis
que naquele cedro perto da raiz nascessem pedras castanhas
todas brilhantes como se pintadas de verniz

ali jazem a tua e a minha mão
em forma de raiz para que delas nasça outro cedro

com flores amarelas abertas

é para ti

 
Inez Andrade Paes, in “Da Estrada Vermelha”, página 46, edição da Autora, 2015.  

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Último bónus


Imagem da net.




Às vezes
chove-nos na infância
e ficam turvas
todas as recordações.

Lembro-me
dos raios de sol
que vieram secar
todas essas imagens.

Quase todas desbotaram
e o deslumbre húmido
escorregou-nos pelas veias.

 
António MR Martins

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Rogério Martins Simões (Romasi)


Rogério Martins Simões (Romasi), imagem da net.



Por quem a minha alma se ausenta

Aquela por quem minha alma se ausenta,
Divina musa que o meu tempo laça,
É sal que me tempera; que reinventa
A noite, quando a noite nos abraça…

Aquela que me tenta e tanto atenta:
Ilumina, fascina, e tem na graça:
A graça com que embala e movimenta,
Meu corpo que perdido esvoaça.

Aquela que na dor me faz rochedo;
Que por amor me perco e perco o medo:
É voz deste sofrer intolerante.

E se nem andar sei aquando ausente,
Aquela por quem meu amor tanto sente:
É beijo deste belo e terno instante.

 
Praia das Bicas, 21/10/2013 20:53:10

 
Rogério Martins Simões (Romasi), in “ Golpe de Asa no Sequeiro”, página 80, edições Chiado Editora, Maio, 2014.

sábado, 18 de novembro de 2017

Numa folha de papel


Imagem da net.





Na branca folha de papel
rectângulo do meu sentir,
entre caneta ou pincel
as imagens podem surgir.

Risonha fuga à vida,
metáfora discordante;
na palavra permitida
um verbo desconcertante.

Quatro cantos em si mesma,
um espaço por preencher;
com quinhentas se faz resma
pelo pintar ou escrever.

Dobrável de qualquer modo
rasgável de tanta forma,
mensageira no seu todo
contrária à simples norma.

Legendada a preceito
simples nota, grande carta,
sendo livre seu respeito
de utilização farta.

Secreta anotadora,
alvo de tantos costumes;
mensagem libertadora
das palavras, seus perfumes.

 
António MR Martins

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Teresa Brinco de Oliveira


Teresa Brinco de Oliveira, imagem da net.




Dispersão

não eram limites as palavras nem os caminhos.
nem o rio tinha margens.
não era o caso. nunca foi o caso.
havia uma nascente cristalina perto da casa. não foi ultrapassada.
a casa era branca. ficou escura.
só tentei dizer que não entendia
o escuro da casa. as cores diluíram-se. a parede soçobrou
no silêncio. e só tentei o murmúrio da nascente.
e era justo. e não fui injusta.
e as palavras acabaram sendo vãs
e tão poucas. e por isso se perderam como a nascente.

quando as palavras encontraram o vértice do ângulo
entraram num gráfico de dispersão
irremediavelmente.

 
Teresa Brinco de Oliveira, in “O Riso Rasgado do Tempo”, página 64, edições edita-Me, Maio de 2011.       

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

A estrelícia do teu olhar


Imagem da net.




Uma flor desponta
no seio do teu olhar.

Vislumbro um mar enorme
por onde navegam os sonhos
e o murmúrio da voz do mundo.

Um sumido eco audível
exulta suavemente a alegria
outrora escondida.

Há um sorriso transparente
no horizonte da tua face
e o teu interior rejubila, intensamente.

A estrelícia do teu encanto
assume-se sem algemas descabidas
numa relevância impune
em simples sublimação.

 
António MR Martins

domingo, 12 de novembro de 2017

Reerguer


Imagem da net.




Partes na manhã adormecida
ante o tremor
das doridas pernas da razão.

Balão de soro
para a tua perspicácia.

A dormência do teu corpo
já não se faz sentir.

Pelo caminho se fará a vida.

 
António MR Martins




sábado, 11 de novembro de 2017

Dalila Moura Baião


Dalila Moura Baião, imagem da net.




ENTRE NÓS E O INFINITO

Amamo-nos assim
entre as palavras e a melodia.
Entre o espasmo dos dias
e a brancura da noite.
Soltam-se os fios de luar e tecemos
a cama e o fogo.
Incendiamos as horas – num único momento –
E toda a labareda alastra como furacão
com olho no mar.
Um barco. Um cais deserto.
Duas mãos que remam num toque de sal
que escorrega no corpo e no silêncio.
As palavras não fazem falta.
A ausência é o local onde nos encontramos.
O verde propaga-se entre os olhos e os limos.
Tudo é mar! Toda a nudez se veste de espuma.
E carícia.
Amamo-nos assim: entre o mel e o silêncio.
Entre nós e o infinito.

 
Dalila Moura Baião, in “Quando o mar corre no peito”, página 34, edições El Taller del Poeta S. L., Pontevedra (Espanha), 2014.

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Esquadria poética


Imagem da net.




Abraçam-se em importantes sentidos,
na plenitude de cada poema.

Os esquemas são desavindos
neste caminhar profundo
e de benfazejo fortalecimento.

As linhas endireitam-se
e o percurso curvilíneo
deixou de o ser.

A linha única
passou a ser o nosso caminho.

 
António MR Martins

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Licínia Quitério


Licínia Quitério, imagem da net.




[Nada demais, amigo]

Nada demais, amigo.

Tudo cabe nas nossas águas.

Miragens, dizes, e eu digo torres, tão altas, tão fundas, tão
iguais ao giz com que as traçámos.

Nos nossos sonhos, poderão nadar todos os peixes, nascidos
das conversas adiadas.

Tudo cabe, tudo vive, tudo se move, nos mil andares dos
velhos mitos.

Nas nossas mãos, nada toca, nada mancha, nada fere, nada
queima, nada.

Intacta a carne que o fogo alimenta e não devora.

Tudo acontece na outra face dos nossos lagos.

 
Licínia Quitério, in “O Livro dos Cansaços”, página 38, edição da Autora, Fevereiro de 2015.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Brindar à (im)perfeição


Em Carvalhal-Miúdo, Góis. Foto de António Martins.



Sede de um vinho já desfeito
alvo propósito indefinido,
secura, desempenho sem jeito,
rumo ao paladar pretendido.

No golpe desferido, mansinho,
seja lá de quem for o proveito,
brindemos com um superior vinho
pelos simples moldes do preceito.

No proteger das vinhas e bagos
dos sublimes sabores, tão vagos,
por onde fervem grandes ilusões.

O suco das uvas de eleição
envolve-nos, assim, na perdição,
aquecendo múltiplos corações.

 
António MR Martins

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Fátima Guimarães


Fátima Guimarães, imagem da net.





 
Não, não quero ser musa, nem ninfa, nem sereia.
Não quero ser palavra calada
nem sonho à margem do desejo.

Quero ser em ti mulher inteira,
aquecer a alvura fria dos lençóis.
Quero ser em ti o sol
duma amena tarde de outono.

Quero-te antes que os sonhos morram,
antes que hibernem em si mesmos.
Quero-te, agora, ao entardecer,
na urgência de quem teme não amanhecer.

 
Fátima Guimarães, in “a voz do nó”, página 58, edição da Autora, Novembro de 2014.