domingo, 25 de fevereiro de 2018

Regresso


Imagem da net.





Na volta de mim
me acolhes,
sem maquiavélicas rotinas
nem pruridos da desesperança,
sem as brumas do desespero
e as noites de lua cheia.

Sei da minha ausência
a uma distância infinita,
ante o inexistente permanecer
na penumbra dos sentidos,
para tão longe parti
e de tão perto regresso.

Sei do tempo
e do destempo,
nos conformados dias
da ilimitada escuridão,
onde o estado amorfo
me trouxe laivos de solidão.

Na volta de mim
o inevitável regresso,
no pródigo recomeçar
da página inacabada,
onde o nosso poema
precisa do último verso.


António MR Martins

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Luís Carlos Patraquim


Luís Carlos Patraquim, foto de Gonçalo Lobo Pinheiro.




[Se no deserto um grão esporear o vento]

Se no deserto um grão esporear o vento
e as crinas açoitarem
a pele

que o viandante escarve seu canto
no côncavo da sede

e delirem os ossos em seu brilho
lívido

rosto essencial ou só galope voraz
caindo entre espaços
côvado
enumerando intervalos

Arquitectura jacente



Luís Carlos Patraquim, in “o escuro anterior”, página 13, edições Companhia das Ilhas, colecção transeatlântico, 2013.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Deslizes a eito


Imagem da net.




Na montanha dos deslizes
ecoam palavras turvas,
que deixaram cicatrizes
em trilhos e suas curvas.

Vai o vento rastejante
engrossar sua andança,
de maneira ondulante
faz crescer sua pujança.

Na montanha dos deslizes
a espera enlouquece,
e no sonho dos petizes
quase tudo acontece.

Planam as aves seu voar
nos enredos habituais,
as vozes parecem gritar
entre todos os animais.

Na montanha dos deslizes
já ninguém há a padecer,
não se criam directrizes
de manhã ao anoitecer.

Tudo passa bem depressa
só se olha de soslaio,
não há nada que impeça
entre “chefão” e lacaio.


António MR Martins

Emanuel Lomelino


Emanuel Lomelino, imagem da net.



ALBERTO CAEIRO

Agora que os perfumes se antecipam aos olhos
e a verdade das pedras foi revelada
não sobram palavras certas nem erradas
para fazer a distinção entre o homem e a natureza.

Agora que os horizontes estão mais perto
ao alcance dos dedos corroídos pelo tempo
não existem segredos invioláveis
nem medos que a razão saiba ocultar.

Agora que o azul se mostra um caminhante
e as pedras são seres com ideias fixas
não sobram palavras por inventar
tampouco existem verbos que se conjuguem.


Emanuel Lomelino, in “Poetas que sou”, página 49, edições Lua de Marfim Editora, Janeiro 2013. 

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Francesco Navarrini


Francesco Navarrini, imagem da net.




IN UNA PIAZZA DESERTA

Il tempo si cancella,
le urla e gli strepiti
diventano sospiri,
sottovoce di acuti silenzi.

Abbandonano il sentiero
del tempo che fugge.

Ritornano ad essere calpestati,
secoli prima
e per secoli ancora,
de suole affrettate.

Pochi minuti di vita
in questi vicoli,
ricoperti di ciottoli,
masticati di passato.


Francesco Navarrini, in “Parole alla finestra”, página 26, edições “Self Publishing Vincente”, 2016.

domingo, 18 de fevereiro de 2018

mágoas e resquícios




Imagem da net.



as palavras mais duras
ensanguentam derrames
urdidos pela mágoa.

depois
celebra-se a palestra
do arrependimento
e de todas as desculpas,
no silêncio
de todas as vozes,
até ao ínfimo pormenor.

a ferida vai sarando
e o tempo se encarregará
do último derrame,
até à total cicatrização.


António MR Martins

sábado, 17 de fevereiro de 2018

João Carlos Martins


João Carlos Martins, foto da  editora Temas Originais.




15.

Havia abraços para sempre
no linho do teu colo:
Havia sândalo
pão quente
canela e rosmaninho.

O sorriso assinalado
onde a ti me unia
e me cantava
era uma arca de sonhos.

E todos me lançavam
ao correr das ondas
no teu peito de linho.


João Carlos Martins (falecido em 2012), in “Abismo de Palavras”, página 29, edições Temas Originais, 2011.   

Embaixador do idioma espanhol em Portugal pela Fundación César Egido Serrano - Museo de la Palabra



Surpreendentemente, mas grato pela distinção que muito me orgulha, fui considerado embaixador do idioma espanhol em Portugal pela Fundación César Egido Serrano - Museo de la Palavra. Muchas gracias!

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Pensamentos congelados


Frio em França, imagem da net.




E este frio cortante
que a cada noite se fortalece
devassa-nos a concentração.

O sentido das palavras
em vãs exultações
já não urde quaisquer perspectivas.

E o frio mais empobrece
a resistência comum,
regelando tantos corpos amorfos.

Alguns movimentos
sacodem o mau estar
e o estado latente
em que essa congelação acontece.

As palavras continuam
sem apoio valorativo
e tudo se esfuma
velozmente.

A inocuidade estabelece
os próximos condimentos,
sem tempero nem paladar.



António MR Martins

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Edgardo Xavier


Edgardo Xavier, imagem da net.




Limite

Salga-me a boca
na maresia dos teus lábios
túmidos
e despe-me

O amor não se esgota
na lisura das sedes
e antes permanece vivo
de sangue

Doces são os teus dedos
quando me esventram
na pressa de beber-me


Edgardo Xavier, in “Corpo de Abrigo”, página 22, edições Temas Originais, 2011.   

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Henrique Levy


Henrique Levy, imagem da net.



canção

se nós trocarmos beijos
numa noite de filigrana
e os teus passos se prenderem
aos doces beijos divinos
meus lábios os escondem
em uma arquinha de cristal
lado sul do corpo
todo, todo em catedral

se tu meu anjo beijasses
as folhas todas do outono
eu em árvore morreria
de tanto, tanto abandono

neste jardim há lugar
para todos os tesouros
vem amor em mim buscar
as pratas os diamantes os ouros


Henrique Levy, in “O Silêncio das Almas”, página 30, edições CriarInovar, Macau, 2015.

sábado, 10 de fevereiro de 2018

Ecos fulgurantes


Imagem da net.




Nos teus lábios ancora a sedução
embalo nas marés inebriantes,
afago dolente em cada mão
empolga sentires contagiantes.

Apelativo rubor caminhante
palpitante anseio, rumo à toa,
o olhar dos teus olhos, cintilante,
como barco, ao luar, à sua proa.

Ondulam jangadas em euforia
murmurando sons em águas-magia,
na vermelha essência do teu rosto.

Melodia exposta em simples toque
com um suspiro vindo a reboque,
ao beber desse saboroso mosto.


António MR Martins

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Manuel Alegre / Prémio Camões 2017


Manuel Alegre, imagem da net.




AS SETE PENAS DO AMOR ERRANTE

Eu não sei se os teus olhos se gaivotas
mas era o mar e a Índia já perdida
as ilhas e o azul o longe e as rotas
minha vida em pedaços repartida.

Eu não sei se o teu rosto se um navio
mas era o Tejo a mágoa a brisa o cais
meu amor a partir-se à beira-rio
em uma nau chamada nunca mais.

Eu não sei se os teus dedos se as amarras
mas era algo que partia e que
ficava. Ou talvez cordas de guitarras
ó meu amor de embarque desembarque.

Eu não sei se era amor ou se loucura
mas era ainda o verbo descobrir
ó meu amor de risco e de aventura
não sei se Ceuta ou Alcácer Quibir.

Eu não sei se era perto se distante
mas era ainda o mar desconhecido
ou Camões a penar por Violante
as sete penas do amor proibido.

Eu não sei se ventura se castigo
mas era ainda o sangue e a memória
talvez o último cantar de amigo
amor de perdição amor de glória.

Eu não sei se teu corpo se meu chão
mas era ainda a terra e o mar. E em cada
teu gesto a grande peregrinação
das sete penas do amor lusíada.


Manuel Alegre, in “Atlântico”, páginas 104 e 105, edições Publicações Dom Quixote, 1989.      

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Há sempre um abraço para dar


Imagem da net.



Entre um doce câmbio destroçado
e dois beijos doces em paralelo,
diferem o bem e o mal-amado
tal como um sapato dum chinelo.

Pagar maldades na mesma moeda
não será na mesma para o amor,
discernir tudo de forma azeda
a cada epílogo trará a dor.

Ficando algo em banho-maria
os resultados só serão lotaria,
a sintonia poderá não vingar,

O remédio para qualquer zanga
não é ter algum lamento na manga,
sim um abraço, e querer amar.



António MR Martins

Amélia Vieira


Amélia Vieira, imagem da net.




[Não ao acaso senhor dos vendavais]

Não ao acaso senhor dos vendavais. Não por acaso são estes teus
sinais.

Eu, sem núpcias e fulgores, não tendo as chamas, também não
quero amores.

Tu, sem a bela capital, não vedes a saudade que sinto enquanto
espero as tuas dores, chagas macias, braçadas, vigias, que semeio
em chão diferente, nestes dias?!

Terra, bem-diz o meu poema. Renegaram-te as nascentes e eras
fêmea. Foste desventrada das sombras do teu reino, e agora,
transformam as fontes e a seiva.

Violeta e rósea é a saudade, como o fundo macio das coisas graves.
Um Outono sem cio que me recobre em toda a minha claridade.

Barqueiro de amor que me vela a sós com os beijos das madrugadas
frias.

Sou eu o dia.

Singular desdita, tu barqueiro que me persegues e me agita, pensa
que:

Tudo desfaço.

Pois nada em mim fica.


Amélia Vieira, in “Abril”, página 45, edições COD, Macau, Setembro de 2017.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Rui Rocha



Rui Rocha, imagem da net.




[experimento em ti a índia dos sentidos]

experimento em ti a índia dos sentidos
a índia das cores dos rajastânicos turbantes
que vejo nos teus olhos límpidos de chá
a índia dos sons quentes das cítaras
que escuto na sua pele abrasada pelo sol
a índia do cheiro de canela cardamomo açafrão
que provo nos teus beijos frescos de aromas
a índia do macio das himalaias neves
que toco nos teus seios brancos
a índia do sabor a sal do índico oceano
em que me banho nas enseadas do teu corpo


Rui Rocha, in “A Oriente do Silêncio”, página 46, edições Esfera do Caos Editores, Janeiro de 2012.   

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Facilitismo nefasto


Imagem da net.




À beira da lamentação tardia
onde se enredam as opiniões,
serviu-se pela maneira mais fria
o menu das frágeis contradições.

Na face, o controlo das expressões
alterando a composição do ser,
sem preconceitos, retém as emoções
e ninguém consegue, isso, perceber.

Subtraindo todas as matizes
erguendo o que cresce das raízes,
suco efémero da compensação.

Leveza infundada, desta feita,
e todos encaminham a receita
para ser, no futuro, a solução.


António MR Martins 

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Carlos André


Carlos André. Foto de Gonçalo Lobo Pinheiro.




MALACA

Não sabe se é formosa se famosa
a colina onde os anos se defendem,
alçada sobre as ruas e vistosa
ali, em frente ao mar que as ondas fendem;
Famosa de seu nome não formosa,
quando as naus de Albuquerque a surpreendem;
e o branco da cal há-de ser lume
que o sol acende a prumo neste cume.

O rio que serpenteia entre ruas
e casas afagadas pelas águas
é espelho onde reluzem velhas luas
nascidas noutros ermos outras fráguas;
com elas bailam tristes ninfas nuas,
lavando na corrente as suas mágoas,
no rio onde a história é uma jangada
e cada cais viagem inacabada.

No branco das paredes e varandas
há esboços de arabescos; e o vermelho
é réstia de outras gentes, outras bandas,
naufrágio de outro mundo, mundo velho.
Malaca, mar do sul, aragens brandas,
no cais onde te miras em teu espelho,
vulto de mar, outrora, e fim do mundo,
vulto de vento, agora, e mar sem fundo.


Carlos André, in “…o sol, logo em nascendo, vê primeiro” (Poemas e Fotografia), lançado em Macau a 30 de Janeiro de 2018, página 103 (cada poema tem fotos alusivas ao seu título, da autoria do mesmo autor, Carlos André), edições Livros do Oriente, Dezembro de 2017.  

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Afago final


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As ondas aparam
as pétalas do teu caminho,
sob um ténue vento
que modera a tua dinâmica
evolutiva.

As borboletas
aconchegam o sentido de todas as formas
e apaziguam
o olhar carinhoso de todas as aves
colmatando uma imagem
de calmaria, entre as belezas naturais,
em radiosa harmonia.

De súbito
as ondas superam todos os limites
transbordando de energia
num brutal embate
contra a solidez de todas as rochas,
mesmo as mais desgastadas
e menos resistentes.

As nuvens, então, partem
receosas
e tornam-se mensageiras
do teu último afago
à natureza.



António MR Martins