sábado, 28 de dezembro de 2019

Tenho-te em mim, Lisboa


Praça do Comércio, Lisboa. Foto de António Martins.




Renovo 
as lembranças esquecidas
de um tempo esfumado
desde que te tenho.


Em ti nasci
como remessa numérica,
restolho do que não presta
entre tanta máfia escondida.


Foste
certeza ou descoberta,
aliança premeditada,
berço do meu sentido,
agasalho do meu primeiro choro.


Não sei se te reconheça
ou te esqueça para sempre,
mas sei que algo me resta:
- Tenho-te em mim!



António MR Martins

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Carlos André


Carlos André, imagem da net.




Largo do Lilau


Casas, largo, sombras, cores,
árvore alçada no meio,
tudo olho, tudo leio,
por ver se guardam sabores
a sementes de centeio


que sobraram da viagem,
pão de trigo, pão de amores,
ali escondido nas flores
ou nos becos desta aragem
que cicia mil odores.


E busco também a fonte,
Entre a sede e a lembrança,
com um sorriso de esperança,
que Lilau, ao rés do monte,
é certeza que não cansa,


é sobra de vento, galera,
caravela na bonança,
afago de quem alcança
por mor de quem desespera,
no porto da segurança.


Pelas pedras da calçada,
pelos bancos de jardim,
sob o olhar do Mandarim,
Lilau é hora pousada,
não é começo nem fim;


é lugar e não lugar,
como quem não espera nada;
é praça despovoada
que Lilau, no seu vagar,
é história desembarcada.


Carlos André, in “RAEM 20 Anos”, Poema 5, edições Casa de Portugal em Macau, Novembro 2019.

sábado, 21 de dezembro de 2019

António Correia


António Correia




Mudanças



Muda o tempo, conforme as estações:

faz sol ou chove, está calor ou frio;

sobre a noite, sucede sempre o dia…

E, em mim, mudam também as emoções…



A um tempo, me alegro ou entristeço,

com as coisas mais simples e banais…

O meu humor tem variações tais

que não entendo, nem sequer mereço…



Se sou filho do sol, não quero o vento,

nem a chuva ou borrasca; quero a luz,

essa luz que alumia e nos conduz

ao Nirvana que, em nós, é pensamento…



Ser e não ser, ausência de tudo…

Mas, até lá, a via é bem estreita

e em todo o lado o mal é que espreita,

se o nosso anjo bom dorme ou fica mudo…



Se a emoção muda, certamente eu não,

porque vivo da essência do poema,

face e reverso do eterno tema:

o amor por tudo o que há na Criação!



António Correia, in “Minha Raiz”, página 128, edições Proart&Letra, 2010.      

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Noites de Dezembro em Ansião


Imagem da net.





O verso fecha-se

à uma da madrugada

enquanto lá fora o gato mia

intrépidas sonoridades

de consecutivo alarido.



O vento descarta

seu esbracejar empolgante

e os silêncios deixam de se manifestar

por entre o usurpador movimento

da tempestade.



A chuva tomba a cântaros

ou a barris ou contentores

que inundam a terra

até ao nível do solo que a sustenta.



As luzes apagam-se em cada casa

e os seus moradores

recolhem avidamente aos seus leitos

aconchegando-se entre lençóis e mantas

e silenciando-se ante o alto ruído que soa em seu redor.



Nas suas preces madrugadoras

anseiam a espera da próxima manhã

e que ela traga o amainar deste enorme prurido.



António MR Martins

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Catarina Domingues


Catarina Domingues, imagem da net.



inversão

flor de pedra
lótus sem chão
um peixe sem laranja
e a cidade corre acordada
é um templo sem ideias.

estou virada do avesso
palmas das mãos erguidas na terra
pés enterrados ao vento
e a torre invertida
um sino pousado no chão.

o meu amor tem uma floresta
no lugar do coração
desceu-lhe o céu à ponta dos dedos
fugiu-lhe pela boca a coisa errada
e entre o templo e a torre
o meu corpo meio morto.

fim de tarde
de um banco sem gente
corre a lua em mármore
nada o peixe sem cor
e a cidade acordada
ainda sem ideias.

Catarina Domingues, in “RAEM 20 anos”, poema 9, edição e coordenação Casa de Portugal em Macau, patrocínio Fundação Macau, Novembro 2019.  

sábado, 30 de novembro de 2019

Há silêncio entre as vozes


Imagem na net.




Corta-se o silêncio
da voz inquieta
augurando
rancores intrometidos
acomodados pelo tempo.

Esvoaça o grito
pelos trilhos da glória
onde o vento é dono
de todos os percalços
inundando
o aroma silvestre
de agudizados tremores.

Caem as folhas secas
do mito
cruzando-se decepadas
no tempo desencontrado
de todas as palavras.

Sucumbem os mortos
com os vivos a seu lado
num percurso alado
onde a saliva silencia
o defeito da voz pendente
pela rouquidão descrente
no receio de tanta demora.


António MR Martins

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Cidade desamparada


Imagem da net.




Caem as rimas falhadas
nas ruas do sem fim
e nos becos perdidos sem luz.

Os recantos escondidos
esbanjam o silêncio das noites
e os números de todas as portas
turvam-se nas madrugadas
do degredo.

A cidade fria esvazia-se
e só
fica totalmente desamparada.

Vão gemendo os carros do lixo,
mas não conseguem amparar o declínio
apesar de aturdirem toda a intimidade
onde se sagra a nudez explícita
e a envolvência de todos os corpos
ou, então, o simples bafejar sonolento
de todos os outros anseios.

A solidez empertiga-se
e o desamparo torna-se conveniente
a todas as conjecturas
mais desesperadas.

Ao dealbar surgem
outros conceitos
outras virtudes
e a esperança volta a renascer.

António MR Martins

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Ana Paula Lavado


Ana Paula Lavado, imagem da net.





A VERDADE DA MENTIRA

Como é espantosa a mente humana
capaz de grandes feitos e invenções
deste o fogo à penicilina
do LSD, à estricnina
até à bomba de neutrões!

Até houve quem inventasse o sol
a chuva, o raio e o trovão
o mar, os rios e as cores
a terra, as plantas e as flores
e ainda a polinização!

Tudo se inventa, tudo se transforma
nem a verdade foge ao achamento.
Aos gestos moldam-se os tons
às letras alteram-se os sons
e temos a mentira como invento!

Ana Paula Lavado, in “Mentes Perversas e outras conversas”, página 30, edições Edium Editores.  

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Sophia de Mello Breyner Andresen, nasceu há 100 anos, no Porto


Sophia de Mello Breyner Andresen, imagem da net.





Tua voz

a Sophia de Mello Breyner Andresen,
no dia em que se comemoram 100 anos do seu nascimento.


São teus versos
o canto agridoce da liberdade
e o encanto da profunda
razão de cada ser.

O ânimo indelével
da consistência da voz
e a luta permanente
pela veracidade da palavra.

O aparelho deslumbrante
da límpida sapiência
e o foco persistente
de qualquer guarida.

António MR Martins
(in “Sob Epígrafe – Tributo a Sophia de Mello Breyner Andresen”), no ano em que se assinalam os 100 anos sobre o seu nascimento), uma edição da Temas Originais.

terça-feira, 5 de novembro de 2019

“Marin Alsicó”


"Marin Alsicó" (Sérgio Manuel Fernandes Nunes),
imagem da net.





VIAJANDO COM FANTASMAS

Estou parado na paragem
Olhando o mundo em burburinho
Tudo não passa de miragem
Cada ser caminha sozinho.

O Homem caminha sozinho
Cego na sua viagem
Nem aprecia o caminho
Esbroando-se na sua voragem.

É um silêncio ensurdecedor
No barulho desta viagem
Não há remédio p’ra dor
Falta uma brisa de coragem.

Vou olhando tristemente
A procissão de mortos-vivos
Também eu me sinto demente
Revoltai-vos seres cativos!

“Marin Alsicó” (Sérgio Manuel Fernandes Nunes), in “Justa Mente e Sal e Picos”, página 97, edições “O Declamador”, 2018.

domingo, 3 de novembro de 2019

Supremo êxtase


Imagem da net.




Ardem as mechas do prazer
pelo sopro do vento falante,
guindado aos pontos fulcrais.

No ruído se acrescentam
os gemidos de circunstância
pelo arrepio da pele,
no sentido da virilidade presente.

No aprumo da consistência
se tornam arredios os males
ante o superior sentir dos seres
e a ousadia de toda a naturalidade.

O atear é concludente
e ao rubro se manifesta
com toda a sua pujança,
até ao dilatar de todos os poros.

Depois
resta a suprema sedução
e o êxtase complementar dos corpos.


António MR Martins

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Luís Filipe Sarmento


Luís Filipe Sarmento. Foto de José Poiares photography



5.

“Sete mulheres de noite”

Cabelo-plumagem ao olhar inesperado reflectido no espelho-universo:
o sereno movimento do torso, a fotografia-memória, registo
de desejo: há um corpo-residência no palácio-sombra, a nudez
soberana no achamento de um território de ninguém. Vibro.
Transfiguração do inesperado, metamorfose da hora
num sereno adiamento da luz. Pretexto do acaso,
movimento imperceptível: sugestão entre a boca semiaberta
de silêncio, acidente e abstracção, novo como descoberta,
o corpo que me absorve, a gruta do teu nome, a embriaguez
das águas que em ti residem, o banho que ilumina a eternidade.

Luís Filipe Sarmento, in “Repetição da Diferença – Casa dos Mundos Irrepetíveis”, página 63, poética edições, Outubro de 2016.   

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Desencontros nas veredas


Imagem da net.




Já não se assume a mágoa
ou qualquer sentir profundo
onde emergem os sentimentos.
Esta turbulência abala as normas,
mesmo as mais poderosas
sem permitir indecisões.

Tudo se encontra feito
pela desdita comprometida
com a bala da frustração.
Os tópicos se omitiram,
os versos ficaram contidos
e a palavra já não seduz.

Este chão do desconforto
não desanuvia o clamor,
que urge então gritar!
Mas o grito não é uníssono
remetendo-se ao silêncio
sem ninguém o escutar.

As bandeiras já não desfraldam,
os hinos não são tocados
e as vozes reduzem-se à mudez.
Uma hecatombe acontece
na encruzilhada dos caminhos
onde explode a manifestação.

António MR Martins

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Pelo breve estreito da amizade



Imagem da net.





Significados bem diferentes
se obtêm neste caminho,
entre as marés da consciência.
Atingem-se registos maiores
e, geralmente, são aprovados
sem anseios contaminantes.

Outros valores aqui se invocam
nas perspicácias da resolução
alheios a colheitas medíocres,
sem palpites da sujeição,
por onde passam sentires poluídos
mas sem efeito valorativo.

É o emergir das sãs virtudes,
embora possam ser ténues e frágeis,
mas de incalculável valor humano
fluindo um estado diferente
e um sentir bem sorridente,
com espasmos de felicidade.

Haverão abraços pelo meio
e sorrisos mais amplos e abertos
neste alinhar tão sentimental.

Mas num qualquer tempo,
afinal,
tudo voltará ao princípio
e ao mesmo vil ritual.


António MR Martins

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Lília Tavares


Lília Tavares, imagem da net.






Guardadora de ventos

Cheguei a casa quando anoitecia.
Ainda quente, o vento empurrava-me o vestido.
Por um instante senti-me ave
levada por brisas, plumas e enigmas.
A aragem entontecia-me de prazer.
Queria ficar nos braços daquele vento.
Imaginei que o anoitecer me pertencia.
De pé, senti o teu corpo.
O meu, aberto e solto, deixou-se ir.
Sou apenas uma guardadora de ventos.

Lília Tavares, in “ Nomes da Noite”, página 50, Colecção A Água e a Sede, II Volume, edições Modocromia, Janeiro, 2019.  

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Renascer na simplicidade de viver


Capa  do livro "Juízos na noite",
Colecção Entre versos, coordenada por Maria Antonieta Oliveira,
uma publicação In-Finita.





Há uma frieza
espontânea,
que antecede
a estática conformação,
num apelo indelével
no começo de cada verso.

Estreita
o muro que nos separa,
na nossa fragilidade
do ser.

Não mais seremos como fomos,
e o futuro
será a surpresa
de cada amanhecer.


António MR Martins
(in “Juízos na noite”, página 16, edição In-Finita, Setembro 2019)

Alberto Cuddel


Alberto Cuddel, imagem da net.





Ilusão?

Reconheço-me estupefacto
Nas águas que me escorrem pelas mãos,
Lágrimas vertidas, areias soltas nos pés,
Neblinas de ideias de homens pequenos,
E madrugadas nascidas do ventre das mães,
Escorro-me onde o vento desfaz as tempestades
Na calma dos corpos… tão belos.

Vejo os horizontes, e os desertos
O voo libertino das aves, asas aladas,
Na palma das minhas mãos escorrem sonhos
Que morrem na rebentação das marés
Por entre luares de Abril, onde navega o coração
Na paisagem gretada pelo sol dos que vivem.
Forço-me navegante no azul do teu olhar
Onde me perco na esperança de me encontrar
O meu corpo sangra, inunda os campos

Desvirginando a terra e as ilusões!


Alberto Cuddel, in “ O silêncio que a noite traz”, página 49, Orquídea Edições, 2018.

sábado, 5 de outubro de 2019

José Tolentino Mendonça


José Tolentino Mendonça, imagem da net.



A casa onde às vezes regresso

A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes,estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos

Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo

Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração

José Tolentino Mendonça, in "A noite abre meus olhos”, edições Assírio & Alvim.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

João Paulo Esteves da Silva


João Paulo Esteves da Silva, imagem da net.





9

Estou vazio, nada a fazer, resta-me só ficar calado no canto
Rezar que algo venha em visita com o descanso de coisas rápidas

Vou lento contra as superfícies mais baças, chego atrasado, sem ritmo
Vivo na fracção de segundo depois de cada momento

Dou imensos erros de ortografia, os dedos não acertam nas letras
Havia uma criança que se queria matar e não sabia

Acelerava pela encosta abaixo até perder a pedalada e tudo se apagar
Vou contra o escuro que se fez nos olhos dela

Vê se me ligas à corrente, que possa acordar longe do bloco de trevas
Separo o espaço em duas metades, há uma prateleira branca

As cores passam por cima e por baixo, eléctricos, comboios
Está muito escuro dentro do meio, o branco apaga-se por dentro

Saio, atravesso as ruas, ainda vazio, chove dentro dos bolsos
Com a noite, com o acender das luzes, quebra-se um pouco a vontade

De animal encurralado a empurrar a criança encosta abaixo
Formam-se poças extensas na calçada, fico a olhar os brilhos

Sinto afinar-se a linha divisória, afasta-se, apresso o passo, quase acerto
No que se vai dando, o chão sujo e molhado aparece-me belo

Sigo o inverno, a primavera fica bem na fotografia das férias
Acordar vivo no quarto dos avós no dia mais luminoso da memória

Sem medo de molhar os pés, sinto a areia a cair do alto
Pela espinha abaixo, vou-me sentar na beira do passeio e agradecer


João Paulo Esteves da Silva, in “ Vertem-se Bíblias em Quimbundo”, s/n.º de página, edições Miasoave, 2017.