Conta-se desde o tempo de antanho que, num lugar desconhecido, os
poetas se reuniam para dissertar pela sua criação escrita. Para eles a palavra
nunca foi cousa vã e sempre permitiu a apresentação de ideias, o assentar de
discussões e, sobretudo, a elaboração dos dizeres do seu sentir e do povo e a
concertação de inúmeras páginas de tantas vidas, inquietações, alegrias, amores
e desamores.
Mas vamos ao que importa nesta história de poetas consagrados e de
outros figurantes nessa cousa da palavra poética. Numa dessas reuniões
compareceram seis nomes de vulto desse paradigma da criação, oral ou escrita, a
poesia: Luís de Camões, Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Manuel Maria Barbosa
du Bocage, Natália Correia e Afonso Duarte. Costumavam aparecer muitos mais,
mas nesse dia tudo foi diferente, apenas estavam estes seis referidos poetas e
mais quatro elementos da nossa contemporaneidade, que amiúde escrevem poesia,
eles: Manuela Fonseca, Xavier Zarco, José Ilídio Torres e António Paiva.
Este encontro adivinhava-se bem diferente dos habituais. Que
fariam ali aquelas personagens díspares e o que iriam expor naquela sessão. À
chegada sentaram-se em volta da mesa oval e entreolharam-se reciprocamente,
escutando apenas o silêncio. Depois de terem passado vários minutos Luís de
Camões, sendo o mais idoso dos presentes, assume-se como coordenador da sessão
e bota palavra.
“Já no largo oceano navegavam, /
As inquietas ondas apartando; / Os ventos brandamente respiravam, / Das naus as
velas côncavas inchando;…”,
disse Camões, com um breve sorriso, iniciando as hostilidades, ficando alguns
dos presentes boquiabertos. Perante este mar de interrogações, um dos novatos
nestas lides, precisamente António Paiva, lhe respondeu: “olhar-te assim sorrindo / abre-me as portas do mundo / não há vagas
nem vento norte / que me atirem ao fundo…”, perante a admiração geral e o
espanto por tão subtil e rápida resposta, se instalou no grupo a euforia.
Estava a tertúlia iniciada, e logo ao rubro. Afonso Duarte, bem mais comedido,
não quis deixar passar mais tempo e tentou acertar as agulhas, proferindo em
voz alta a sua opinião: “Onda do mar na
barra… Enorme vaga / De Terra e Céu, vejo o horizonte raso: / Nas minhas mãos,
em concha, o mar afaga; / E, em flor ao peito, ponho o Sol do Ocaso…”, com
esta observação se desenharam muitas interrogações na cabeça dos presentes, mas
Luís de Camões não quis deixar por baixo o seu papel de orientador desta
conversa poética, dizendo de seguida: “Deixem
dos sete Céus o regimento, / Que do poder mais alto lhe foi dado, / Alto poder,
que só co’o pensamento / Governa o Céu, a Terra, e o Mar irado…” e todos se
deslumbraram com esta enorme perspicácia de fazer evoluir a contenda. Sem que
esperassem muito começa a ouvir-se a voz de Florbela Espanca: “Cheguei a meio da vida já cansada / De
tanto caminhar! Já me perdi! / dum estranho país que nunca vi / sou neste mundo
imenso a exilada…”
O ambiente começava a aquecer. E alguns dos presentes exasperavam
pela chegada da sua deixa, no sentido de poderem esgrimir com o grupo os seus
dotes poéticos. Eis que se ouve a voz contemporânea de Xavier Zarco: “Era longa, / a noite. / Manta tecida e
estendida / pelos campos / que desconhecidas mãos / regiam / ao ritmo das
estações.” Um coçar de cabeça surgiu como generalizado. A situação havia
sido alterada e as dúvidas não se dissiparam, aliás aumentaram em grande força.
Qual seria a resposta adequada para tal alusão? Alguns minutos (e não foram
poucos) de silêncio se fizeram ao redor daquela mesa de virtudes. E eis que Camões
decide apaziguar a questão, dizendo: “Prometido
lhe está do Fado eterno, / Cuja alta Lei não pode ser quebrada, / Que tenham
longos tempos o governo / Do mar, que vê do Sol a roxa entrada.” Logo as
coisas se desanuviaram, por um lado, mas a pertinência de referências tão
peculiares veio fazer entrelaçar as ideias de todos e talvez equalizar os modos
e preceitos da continuidade da sessão. Que mais se seguiria?!... Nesse sentido,
entra nas lides mais um dos novatos destas epopeias, José Ilídio Torres, restando
deles a doce Manuela Fonseca, e energicamente afirma “Os poemas não se servem frios” e, num repente, todos levantavam as
cabeças, restando Bocage, num dos topos da mesa, que apresentou um ar
pensativo, sorrindo, levemente, de seguida. José Ilídio não deu hipótese de
resposta e disparou logo após: “Acordei
morto e nada tinha mudado / Fazia-se a guerra a meus pés/ Ninguém sabia quem me
tinha matado…”, perante alguns momentos de respiração sustida, continua: “Morto vivo noutro alojado em mim / Amanhã não
acordarei, já decidi / E um eu verdadeiro nascerá por fim”. Todos ensaiaram
alguns segundos de meditação.
Fernando Pessoa que, desde o começo da reunião, se vinha mantendo
impávido e sereno, decidiu dar continuação aos “trabalhos”, acrescentando o
seguinte: “Ó mar salgado, quanto do teu
sal / São lágrimas de Portugal! / Por te cruzarmos, quantas mães choraram, /
Quantos filhos em vão rezaram! / Quantas noivas ficaram por casar / Para que
fosses nosso, ó mar!” Camões não via necessidade de intervir e até se via
satisfeito com o decurso da sessão. A parada havia subido. Nisto a doce Manuela
Fonseca, com seu lindo sorriso, abriu a boca e aventurou-se a exprimir suas
palavras: “Sonhei sete pães / Sete
sementes / Sete águas / Sete camas / Sete escolas / Sete esperanças / Sonhei /
Sete crianças / Sete sorrisos / Acordei / Com sete lágrimas”. O grupo
alterou, na generalidade, o semblante quedando-se cabisbaixo. Nesse desígnio
Camões tenta revitalizar as forças presentes: “Eis que aparecem logo em companhia / Uns pequenos batéis, que vêm
daquela / Que mais chegada à terra parecia, / Cortando o longo mar com larga
vela.” Sem fazer esperar alguém, num ápice, Bocage desenvolve sua
intervenção: “Meus olhos, atentai no meu
jazigo, / Que o momento da morte está chegado; / Lá soa o corvo, intérprete do
fado; / Bem o entendo, bem sei, fala comigo.”
Palavras ditas, logo outras se ouvem. Desta feita vindas da voz de
Natália Correia, que assim ultima a intervenção de todos os presentes: “Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
/ Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira, / Com o teu esconjuro da bomba
e do algoz, / Abre as portas da História, deixa passar a Vida”. Ouve um
clamor que incendiou o rubor na sala, naquela mesa todos a aplaudem em
uníssono. A sessão tinha sido deveras profícua. Luís de Camões a deu por
terminada e todos regressaram às suas inexistências e existências. E eu, será
que sonhei?!...
António MR Martins
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