quinta-feira, 2 de maio de 2013

A voz dos poetas





Conta-se desde o tempo de antanho que, num lugar desconhecido, os poetas se reuniam para dissertar pela sua criação escrita. Para eles a palavra nunca foi cousa vã e sempre permitiu a apresentação de ideias, o assentar de discussões e, sobretudo, a elaboração dos dizeres do seu sentir e do povo e a concertação de inúmeras páginas de tantas vidas, inquietações, alegrias, amores e desamores.
Mas vamos ao que importa nesta história de poetas consagrados e de outros figurantes nessa cousa da palavra poética. Numa dessas reuniões compareceram seis nomes de vulto desse paradigma da criação, oral ou escrita, a poesia: Luís de Camões, Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Manuel Maria Barbosa du Bocage, Natália Correia e Afonso Duarte. Costumavam aparecer muitos mais, mas nesse dia tudo foi diferente, apenas estavam estes seis referidos poetas e mais quatro elementos da nossa contemporaneidade, que amiúde escrevem poesia, eles: Manuela Fonseca, Xavier Zarco, José Ilídio Torres e António Paiva. 
Este encontro adivinhava-se bem diferente dos habituais. Que fariam ali aquelas personagens díspares e o que iriam expor naquela sessão. À chegada sentaram-se em volta da mesa oval e entreolharam-se reciprocamente, escutando apenas o silêncio. Depois de terem passado vários minutos Luís de Camões, sendo o mais idoso dos presentes, assume-se como coordenador da sessão e bota palavra.
“Já no largo oceano navegavam, / As inquietas ondas apartando; / Os ventos brandamente respiravam, / Das naus as velas côncavas inchando;…”, disse Camões, com um breve sorriso, iniciando as hostilidades, ficando alguns dos presentes boquiabertos. Perante este mar de interrogações, um dos novatos nestas lides, precisamente António Paiva, lhe respondeu: “olhar-te assim sorrindo / abre-me as portas do mundo / não há vagas nem vento norte / que me atirem ao fundo…”, perante a admiração geral e o espanto por tão subtil e rápida resposta, se instalou no grupo a euforia. Estava a tertúlia iniciada, e logo ao rubro. Afonso Duarte, bem mais comedido, não quis deixar passar mais tempo e tentou acertar as agulhas, proferindo em voz alta a sua opinião: “Onda do mar na barra… Enorme vaga / De Terra e Céu, vejo o horizonte raso: / Nas minhas mãos, em concha, o mar afaga; / E, em flor ao peito, ponho o Sol do Ocaso…”, com esta observação se desenharam muitas interrogações na cabeça dos presentes, mas Luís de Camões não quis deixar por baixo o seu papel de orientador desta conversa poética, dizendo de seguida: “Deixem dos sete Céus o regimento, / Que do poder mais alto lhe foi dado, / Alto poder, que só co’o pensamento / Governa o Céu, a Terra, e o Mar irado…” e todos se deslumbraram com esta enorme perspicácia de fazer evoluir a contenda. Sem que esperassem muito começa a ouvir-se a voz de Florbela Espanca: “Cheguei a meio da vida já cansada / De tanto caminhar! Já me perdi! / dum estranho país que nunca vi / sou neste mundo imenso a exilada…”
O ambiente começava a aquecer. E alguns dos presentes exasperavam pela chegada da sua deixa, no sentido de poderem esgrimir com o grupo os seus dotes poéticos. Eis que se ouve a voz contemporânea de Xavier Zarco: “Era longa, / a noite. / Manta tecida e estendida / pelos campos / que desconhecidas mãos / regiam / ao ritmo das estações.” Um coçar de cabeça surgiu como generalizado. A situação havia sido alterada e as dúvidas não se dissiparam, aliás aumentaram em grande força. Qual seria a resposta adequada para tal alusão? Alguns minutos (e não foram poucos) de silêncio se fizeram ao redor daquela mesa de virtudes. E eis que Camões decide apaziguar a questão, dizendo: “Prometido lhe está do Fado eterno, / Cuja alta Lei não pode ser quebrada, / Que tenham longos tempos o governo / Do mar, que vê do Sol a roxa entrada.” Logo as coisas se desanuviaram, por um lado, mas a pertinência de referências tão peculiares veio fazer entrelaçar as ideias de todos e talvez equalizar os modos e preceitos da continuidade da sessão. Que mais se seguiria?!... Nesse sentido, entra nas lides mais um dos novatos destas epopeias, José Ilídio Torres, restando deles a doce Manuela Fonseca, e energicamente afirma “Os poemas não se servem frios” e, num repente, todos levantavam as cabeças, restando Bocage, num dos topos da mesa, que apresentou um ar pensativo, sorrindo, levemente, de seguida. José Ilídio não deu hipótese de resposta e disparou logo após: “Acordei morto e nada tinha mudado / Fazia-se a guerra a meus pés/ Ninguém sabia quem me tinha matado…”, perante alguns momentos de respiração sustida, continua: “Morto vivo noutro alojado em mim / Amanhã não acordarei, já decidi / E um eu verdadeiro nascerá por fim”. Todos ensaiaram alguns segundos de meditação.
Fernando Pessoa que, desde o começo da reunião, se vinha mantendo impávido e sereno, decidiu dar continuação aos “trabalhos”, acrescentando o seguinte: “Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal! / Por te cruzarmos, quantas mães choraram, / Quantos filhos em vão rezaram! / Quantas noivas ficaram por casar / Para que fosses nosso, ó mar!” Camões não via necessidade de intervir e até se via satisfeito com o decurso da sessão. A parada havia subido. Nisto a doce Manuela Fonseca, com seu lindo sorriso, abriu a boca e aventurou-se a exprimir suas palavras: “Sonhei sete pães / Sete sementes / Sete águas / Sete camas / Sete escolas / Sete esperanças / Sonhei / Sete crianças / Sete sorrisos / Acordei / Com sete lágrimas”. O grupo alterou, na generalidade, o semblante quedando-se cabisbaixo. Nesse desígnio Camões tenta revitalizar as forças presentes: “Eis que aparecem logo em companhia / Uns pequenos batéis, que vêm daquela / Que mais chegada à terra parecia, / Cortando o longo mar com larga vela.” Sem fazer esperar alguém, num ápice, Bocage desenvolve sua intervenção: “Meus olhos, atentai no meu jazigo, / Que o momento da morte está chegado; / Lá soa o corvo, intérprete do fado; / Bem o entendo, bem sei, fala comigo.”
Palavras ditas, logo outras se ouvem. Desta feita vindas da voz de Natália Correia, que assim ultima a intervenção de todos os presentes: “Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz. / Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira, / Com o teu esconjuro da bomba e do algoz, / Abre as portas da História, deixa passar a Vida”. Ouve um clamor que incendiou o rubor na sala, naquela mesa todos a aplaudem em uníssono. A sessão tinha sido deveras profícua. Luís de Camões a deu por terminada e todos regressaram às suas inexistências e existências. E eu, será que sonhei?!...
 
António MR Martins
 
 
 
 
 
 


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