terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Yao Feng


Yao Feng, imagem da net.




Em busca da luz

Volta a luz à lâmpada
e de súbito está de novo escuro
quem prende lá fora a falena-da-noite
e a ensina a aceitar a obscuridade?

Depois de um treino sem fim
a falena de asas rasgadas
já não sabe voar
arrasta-se no crepúsculo
rasteja lenta como um caracol
a caminho da luz.


Yao Feng, in “Palavras Cansadas da Gramática” (Poesia e Fotografia), página 105, edições Gradiva, Novembro de 2014.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Intenções refreadas


Imagem da net.




Na trama dissonante
as eventuais inconformidades
extrapolam
as derivas das consonâncias
mutiladas.

A quezília das palavras
torna-se inoportuna
e os demais clamores
recheiam-se
de sobras desvalorizadas.

As paredes simbolizam
fronteiras intransponíveis
e o aroma da liberdade
torna-se nauseabundo
no amolecer
das prementes necessidades.


 António MR Martins

"Empresta-me a Palavra" à venda na Livraria Portuguesa, em Macau.




O meu último livro "Empresta-me a Palavra", sob a chancela Chiado Editora, tem dois exemplares, para venda, numa das prateleiras destinadas à Poesia, na Livraria Portuguesa, em Macau. Foto por mim tirada, em 28 de Janeiro de 2018, à tardinha. 

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Nuno Júdice


Nuno Júdice, imagem da net.




HORÁRIO

O vento, nas estações de província, tem
o mesmo rumor a que a infância habituou
o ouvido.

Esse vento não se parece com nada
do que tenho à minha volta: a cidade, ruas,
prédios, imagens apressadas do vazio.

No entanto, paro por instantes
para me lembrar melhor desse ruído
que desapareceu.

Ao fundo, um pedaço de rio leva-me para
o outro lado, onde o vento ainda sopra
como sempre.

Saio da sombra para entrar no cais
que o sol da tarde torna insuportável,
embora não embarque para parte nenhuma.

O vento, por vezes, limita-se a dizer
que o fim da linha pode ser uma estação
de passagem.



Nuno Júdice, in “Um Canto na Espessura do Tempo”, página 27, edições Quetzal Editores, Lisboa 1992.

Frustrada insurreição


Imagem da net.




Pelo trilho do último sentido
permanecem os passos derradeiros
d’insigne caminhante permitido
da gesta dos maiores cavaleiros.

Afronta aos nervosos concorrentes
que invejosos restam aguardando,
a chegada de todas as patentes
para esmiuçar novo comando.

O chão treme com tanta passagem
a poeira desvirtua condições
fazendo lembrar brumas de antanho,

Pelo sólo as marcas são miragem
as dúvidas faíscam as opiniões
e a tristeza cresce de tamanho.


António MR Martins

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

José Drummond



José Drummond, imagem da net.




[não sabes nada]

não sabes nada,
sabes apenas que tenho olhos rasgados,
e grandes,
e é só,
porque
tu
não sabes nada,
e até podia ser que
soubesses,
e que como defendes todo o tempo o amor
é eterno,
porque se suspende.
mas a verdade
é que não sabes nada
e nem sequer sobre o amor sabes tu alguma coisa.

não sabes nada,
se soubesses.


José Drummond, in “o exorcismo”, página 62, edições COD, Macau, Setembro de 2017.  

domingo, 21 de janeiro de 2018

Atrair como fatalidade, ou não


Fatalidade, de Guimarães Rosa. Imagem da net.




Elícito ao teu olhar,
perante a derriça
de todos os meus sentires,
me reduzi à ínfima partícula
do ser.

A lentidão do aconchego
onde se exprimiu a voz da coragem
desagua na foz dos sentidos mortos
insignificantes.

Haverá, sempre,
fatalidade entre nós.



António MR Martins

Sérgio Godinho


Sérgio Godinho, imagem da net.



Os órgãos vitais

Eu tenho que contar com tudo o que há de dentro –
pulmões e suspiros e cérebro e desilusões
intestinos funcionais no sentido lato do termo
rins e fígado à espera do amor breve
bebida a mais muito depressa
consumo mínimo para então conforto máximo.

E todos eles velados pelo irascível
(mas paciente) coração
rei do sopro da vida
e da ventania dos amores
o que julgando que em todos manda
de todos sofre o resultado –
seja aos amores baqueando
seja importando problemas
das outras resoluções do corpo.

Até que uma tarde, manhã, noite
por impulso e por vingança
(aquela que se serve fria)
arrefece e deixa de bater
sem dar tempo aos outros de o chorarem:
eles que em breve estarão
a chorar por conta própria
cada qual para seu lado
renegados e pouco a pouco
sem pavor desaparecidos.

O que foi dito por inesperado e imprevisível
talvez seja apenas a maneira de um todo
se descentrar
fugir à tarefa insanamente por nós mesmos exigida
à nossa pequena parte, já manchada de sangue, sangue
por rectas e curvas de coerência.
O sangue por um fio.


Sérgio Godinho, in “O Sangue Por Um Fio”, páginas 86 e 87, edições Assírio & Alvim, poesia inédita portuguesa / 116, Setembro de 2009.   

sábado, 20 de janeiro de 2018

Extremos distanciados


Capa de "Águas de Ternura", edições Temas Originais, 2011.





No
Quilómetro
Da separação
Se anuncia
O afastamento

Na
Distância
Da observação
Se reporta
O pensamento

Há momentos
Em que estamos longe
Estando tão perto

Em muitos casos
Lado a lado

António MR Martins


(in “Águas de Ternura”, página 57, edições Temas Originais, 2011.)

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Gonçalo Lobo Pinheiro


Gonçalo Lobo Pinheiro, foto disponibilizada pelo autor.




Al-hamma

O meu lugar é aqui,
Onde os caminhos se estreitam
E as calçadas gastas cantam o fado.
No beco o cheiro a sardinha,
No pátio a roupa pendurada nos estendais.
Consigo ser assim, pitoresco,
Quando percorro as tuas ruelas.
Para mim és muito, Alfama velhinha,
Lugar de tradições; sobranceira,
Onde a varina canta a tua história
E o marinheiro, já velho, perdura na memória.


Gonçalo Lobo Pinheiro, in “Etéreo”, página 31, edições Temas Originais, 2010.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Vítor Cintra


Vítor Cintra, imagem da net.



(Sempre presente, este saudoso poeta e amigo, que jamais esquecerei. Hoje, dele, trago-vos um poema de um livro que é um autêntico hino à mulher (de que é exemplo o poema aqui publicado, precisamente o primeiro do livro) “Nas brumas da magia”. Amavelmente, concedeu-me o privilégio de escrever o prefácio desta obra, foi um prazer único e inesquecível.)

1.

A Natureza modelou,
nas formas do teu corpo,
a beleza de gerações.

Cinzelando com precisão,
talhou-te a face delicada,
rasgou-te o sorriso sedutor,
acendeu-te o fogo do olhar,
ergueu-te o pescoço esbelto,
ornando-os com o perfume dos teus cabelos.
Com rasgos de génio,
elevou-te os seios sensuais,
alisou-te o ventre fértil,
torneou-te as coxas soberbas,
alongou-te a elegância das pernas
tornando-te um mito, chamado mulher.

Ao dotar-te de sensibilidade,
Deus transformou-te na obra-prima da Criação.


Vítor Cintra, in “Nas brumas da magia”, página 13, edições Temas Originais, 2011.   

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Não há pão para as migalhas humanas


Imagem da net.




Soltam-se as migalhas
do pão perdido no tempo,
ressequido,
que ao travo consumido,
pelo mastigar rude,
traz o rijo sabor
de todas as amarguras.

Tanta migalha desperdiçada
a que as formigas não dão vazão,
no seu peculiar labor,
para se protegerem
de todos os invernos.

Por esse mundo fora…
tanto pedaço de gente
sem as migalhas que bastem.

Em todas as estações,
pelos meses fora,
todos os dias!...


António MR Martins

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Deusa d'Africa


Deusa d'Africa, imagem da net.




JURO

Juro que ressuscitei
dos teus braços, em que a vida me sepultara,
acompanhada por meio mundo que urinara
hinos melancólicos de júbilo,
sobre a minha desgraça e o meu penico ensurdecido,
por todo o dejecto expelido
por artistas da minha praça sem arte,
que tinham sido convidados,
à minha cerimónia fúnebre.

Juro também,
que tendo sido exterminada a natureza,
com a qual fui soterrada,
desabrocharam meus dias murchos,
na presença de criminosos em debandada
que me saquearam a vida
em troca da alegria, da tristeza e da doença
na jura de Junho junto aos juízes
e aos Padres e Abades
que com a minha família
desvalorizaram-me pelo gado.

Juro que ressuscitei,
da simpática morte que me acolhera,
em seus aposentos, onde teus abraços e beijos,
me enlutavam da venenosa ternura
pela qual fui morta,
não tendo jurado em Junho junto aos juízes
junto aos Padres e Abades
morrer eternamente.


Deusa d’Africa, in “A voz das minhas entranhas”, páginas 68 e 69, Prémio Literário Internacional ALPAS XXI 2011, Grupo Cultural Xitende / Ciedima, Lda., Maputo, 2014.   

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

De volta ao Alentejo profundo


Imagem da net.



Do distante ao perto
de tanto sentir

quando se entrava
naquela rua de casas térreas
ao bom cariz
das aldeias
e vilas alentejanas

o céu queimava
a soalheira cantiga
da sesta adormecida
pelo exterior vazio
da gente
onde o branco se mantinha
num tom
ora brilhante
e mais luzidio
perante o baço turvo dos dias 

na casa do fundo
ouvia-se o cante
na sonoridade  de um rádio a pilhas
numa dolência conformada
pelos trilhos rudes
da sobrevivência

ainda a cegonha
havia abalado há pouco
e as pilhas
demorariam
algumas semanas
a sucumbir


António MR Martins 

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Rui Cascais


Capa do livro "Returning home dirty with the light", de Rui Cascais.




SONHEI QUE CHEGAVAM VISITAS

“O Inverno ainda não me abandonou.
Nem sequer eu,” – adormeci a pensar.

Sonhei que entravam todas
pela mesma porta

as suas falas dividiam o ar
e os seus risos carburavam

alguém na casa parecia ocupar-se delas
mas quem, se vivo só?

O homem que vivia só
e não abandonado pelo inverno

sondava e sondava no seu sono
com centelhas

e apercebia palavras irreconhecíveis
que pareciam vir dizer-lhe de si.

Com uma orelha perseguia o sonho
com a outra escutava a mina da casa.

Havia passos na cozinha como os que
dá um anfitrião

e ruídos de chá no vestíbulo
servido de pé.

Estavam de passagem as visitas
que sentia ali escuras e de longe

ouviu-as sair pelo interior
do seu acordar por fim

partindo pelas assoalhadas enquanto
a imagem dele endurecia num espelho.


Rui Cascais, in “Returning home dirty with the light“, páginas 46 e 47, edições COD, Setembro de 2017, Macau.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Emersão


Cena do filme "Bravura Indômita" (2010), imagem na net.



Escorre um sangue bravio
que nos incomoda a contenda,
numa confrontação pertinente
e assaz suspeita.

Espevitado jeito
que a calma, por si só,
jamais conseguirá controlar.

Ao fim de tudo,
na inconformidade do ser,
empolgando-se,
surge-restando
um esteio para desbravar.


António MR Martins