domingo, 21 de janeiro de 2018

Sérgio Godinho


Sérgio Godinho, imagem da net.



Os órgãos vitais

Eu tenho que contar com tudo o que há de dentro –
pulmões e suspiros e cérebro e desilusões
intestinos funcionais no sentido lato do termo
rins e fígado à espera do amor breve
bebida a mais muito depressa
consumo mínimo para então conforto máximo.

E todos eles velados pelo irascível
(mas paciente) coração
rei do sopro da vida
e da ventania dos amores
o que julgando que em todos manda
de todos sofre o resultado –
seja aos amores baqueando
seja importando problemas
das outras resoluções do corpo.

Até que uma tarde, manhã, noite
por impulso e por vingança
(aquela que se serve fria)
arrefece e deixa de bater
sem dar tempo aos outros de o chorarem:
eles que em breve estarão
a chorar por conta própria
cada qual para seu lado
renegados e pouco a pouco
sem pavor desaparecidos.

O que foi dito por inesperado e imprevisível
talvez seja apenas a maneira de um todo
se descentrar
fugir à tarefa insanamente por nós mesmos exigida
à nossa pequena parte, já manchada de sangue, sangue
por rectas e curvas de coerência.
O sangue por um fio.


Sérgio Godinho, in “O Sangue Por Um Fio”, páginas 86 e 87, edições Assírio & Alvim, poesia inédita portuguesa / 116, Setembro de 2009.   

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