segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Esperança


Tantas formas revestes, e nenhuma
Me satisfaz!
Vens às vezes no amor, e quase te acredito.
Mas todo o amor é um grito
Desesperado
Que apenas ouve o eco...
Peco
Por absurdo humano:
Quero não sei que cálice profano
Cheio de um vinho herético e sagrado.

Miguel Torga

Quietude final



O momento é de silêncio
Na estrada do sem fim
Onde o desagrado ultima
A consternação emergente
Do sentido já morto
E sem memória retida

O atalho já não serve
Para uma utilização certa
De um destino aproximado
No tempo que não demora
Na exaustão de cada hora
E da mensagem proscrita

A nuvem já não existe
No desfiladeiro estrelar
E na insónia da paisagem
Esquecida no lamento
Onde despontou a vileza
De toda a consumação

Os clamores terminaram
Na pressão permitida
Que restaura ambiguidade
E desfere imposições
Sem sentido profícuo
E valor sensorial

O sentir já não mora
No contexto da vida
Ou de qualquer existência
Então nada mais fenece
E outra origem prevalece
Numa morte permitida


António MR Martins

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Coração Habitado


Aqui estão as mãos.
São os mais belos sinais da terra.
Os anjos nascem aqui:
frescos, matinais, quase de orvalho,
de coração alegre e povoado.

Ponho nelas a minha boca,
respiro o sangue, o seu rumor branco,
aqueço-as por dentro, abandonadas
nas minhas, as pequenas mãos do mundo.

Alguns pensam que são as mãos de deus
— eu sei que são as mãos de um homem,
trémulas barcaças onde a água,
a tristeza e as quatro estações
penetram, indiferentemente.

Não lhes toquem: são amor e bondade.
Mais ainda: cheiram a madressilva.
São o primeiro homem, a primeira mulher.
E amanhece.

Eugénio de Andrade

Entre o mar e a lua


Abafam-se as ondas deste mar
e os ruídos da noite escura,
brilhando nas águas o luar
por entre sedutora brandura.

Sonham-se enredos de magia
entre as palavras e os gestos,
suprem-se máculas na nostalgia
e esquecem-se tantos protestos.

Sintonizam-se pelos semblantes
num olhar de mútuo consenso,
vislumbrando doce harmonia.

Brade o mar os sons latejantes
em aromas de puro incenso
e com a lua leva a noite fria.


António MR Martins

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sábado, 29 de outubro de 2011

O interrogatório de Rosa Luxemburgo



O interrogatório
de Rosa Luxemburgo
durou apenas algumas horas. Ela sabia
tão bem como os seus carcereiros
que palavras ali já não existiam. Caída
na batalha
contra o nervo vital do Estado; banhada
em sangue
e quase sem sentidos,
Rosa,
frágil camarada,
pediu aos caçadores seus assassinos
agulha e linha. E, silenciosamente,
com uma pistola apontada à têmpora,
coseu a bainha da saia que se encontrava
descosida. Pouco depois
o cadáver
foi lançado à água.


Casimiro de Brito

Pólo da irreverência

No degrau do esquecimento
pairam os passos que estão sós,
oriundos do consentimento
e comandados ao som da voz.

Sem recurso à sua demanda
ou à revolta do madrugar,
em suspenso não se desanda
pelo seu único ultimar.

Perdidos entre tanta frente
pelo retrocesso contido
em episódios esquecidos.

Enfrentando neste presente
resolvem tanto permitido,
nunca se dando por vencidos.


António MR Martins

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Torniquete


A tômbola anda depressa,
Nem sei quando irá parar ---
Aonde, pouco me importa;
O importante é que pare...
--- A minha vida não cessa
De ser sempre a mesma porta
Eternamente a abanar...

Abriu-se agora o salão
Onde há gente a conversar.
Entrei sem hesitação ---
Somente o que se vai dar?
A meio da reunião,
Pela certa disparato,
Volvo a mim a todo o pano:

Às cambalhotas desato,
E salto sobre o piano...
--- Vai ser bonita a função!
Esfrangalho as partituras,
Quebro toda a caqueirada,
Arrebento à gargalhada,
E fujo pelo saguão...

Meses depois, as gazetas
Darão críticas completas,
Indecentes e patetas,
Da minha última obra...
E eu --- prà cama outra vez,
Curtindo febre e revés,
Tocado de Estrela e Cobra...


Mário de Sá-Carneiro

“Já não há pombas da paz”


Soltam-se as pombas bravias
com penas de múltiplas cores,
que estão da paz arredias
e propensas aos desamores.

Multiplicam-se entre jardins
e pelos espaços do mundo,
são criadas para outros fins
neste planeta moribundo.

Desencadeiam guerrilhas
e rumores sem mais sentido,
num declínio em que tudo jaz.

Lembram-nos algumas matilhas
onde nada é mais ouvido…
“Já não há mais pombas da paz!”


António MR Martins

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terça-feira, 25 de outubro de 2011

O destino do poema

É nas noites que me calo
e as palavras se sonham,
no passar do intervalo
da espera que as acolham.

É nos dias que mais escrevo
registos então sonhados,
com ternura as descrevo
em versos bem perfumados.

É no inspirar que medeia
os sons imaginários,
pelo sonhar acordado.

E nos termos trago ideia,
para os destinatários
ter poema determinado.


António MR Martins

domingo, 23 de outubro de 2011

Arte do pensamento - Poema premiado com uma Menção Honrosa no I Concurso de Poesia da Associação Cultural DRACA (Palmela) - 2011



Bramem sentidos figurados
entre a gesta de um pintor,
que pincelando alarmados
lhes restabelece fulgor.

Moldam trâmites contornos
imbuídos de coisa bela,
na argila e seus adornos
e no barro da janela.

As paisagens deslumbrantes
incendeiam inspirações,
nas retinas dos amantes
e na tela das seduções.

Tanta pedra trabalhada
com robustez e carinho,
na criação suportada
entre um trago de vinho.

Desenhado nos contextos
da mente imaginativa;
se concebem os pretextos
que fazem fluir à deriva.

Num disparo condizente
se regista um pólo raro,
deixando tudo pendente
de um próximo disparo.

Um sorriso se regista
em tanto enquadramento;
a alegria salta à vista
na conclusão do elemento.

Esculpem obras tamanhas
entre vários artefactos,
no imaginar emprenhas
o condensar desses factos.

Esmeram imensas virtudes
em dons de tantas vertentes,
ofícios de plenitudes
que às artes são referentes.

Anseiam novos objectos
em eufóricos debates,
que transformam os dejectos
em sublime elo das artes.

Outros fazem pela escrita
a arte de muito criar,
alterando a desdita
à doçura de cada olhar.

Numa festa sem limites
se empolga toda a Arte,
omitindo os arrebites
e inspirando-se em Marte.

A cultura é benfazeja
na evolução humana;
a Arte, bem vinda seja
com o que dela emana.

A melodia mais sonora
ou uma peça de teatro,
entre cinema enamora
a ópera de cada retrato.

Num poema se transcreve
o sentir e tanta magia,
que pelo que se escreve
se acerca a ventania.

Na tela de cada vida
se regista tanto quadro,
entre a escultura saída
e colocada num adro.

Há quem pinte sua sorte
ou um nu inquietante;
mas até no tema morte
a pintura é deslumbrante.

A Arte e seus valores
tanto têm de se preservar;
assim como os amores
para sempre se devem amar.

E nesta tristeza da crise
a Arte tem a alegria
e entre qualquer reprise
nos quebra a monotonia.


António MR Martins

Obtive um Prémio Literário

Obtive uma Menção Honrosa no I Concurso de Poesia da Associação Cultural Draca (Palmela) - 2011.

Uma boa notícia para alegrar, um pouco, o ânimo.

Nesta momentânea felicidade, cabe-me agradecer a quem julgou, à DRACA pela iniciativa, desejando que muitas mais possam haver e a todos os participantes em geral que fizeram elevar o valor deste prémio.

A todos os outros premiados os meus sinceros parabéns.

O meu abraço fraterno. Viva a poesia!



quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Elogio da Amada


Ei-la que vem ubérrima numerosa escolhida
secreta cheia de pensamentos isenta de cuidados
Vem sentada na nova primavera
cercada de sorrisos no regaço lírios
olhos feitos de sombra de vento e de momento
alheia a estes dias que eu nunca consigo
Morde-lhe o tempo na face as raízes do riso
começa para além dela a ser longe
A amada é bem a infância que vem ter comigo
Há pássaros antigos nos límpidos caminhos
e mortes como antes nunca mais
Ei-la já que se estende ampla como uma pátria
no limiar da nossa indiferença
Os nossos átrios são para os seus pés solitários
Já todos nós esquecemos a casa dos pais
ela enche de dias as nossas mãos vazias
A dor é nela até que deus começa
eu bem lhe sinto o calcanhar do amor
Que importa sermos de uma só manhã e não haver
                                                      em volta
árvore mais açoitada pelos diversos ventos?
Que importa partirmos num desmoronar de poentes?
Mais triste mesmo a vida onde outros passarão
multiplicando-lhe a ausência que importa
se onde pomos os pés é primavera?

Ruy Belo

Extensão andada



Quase nada se sente
Neste percurso sem vento
Nas nódoas do contratempo

Limite da presunção
Descabida do tempo
Influenciada pela envolvência

Passos dados em comum
Sem o jeito de outras eras
Mas com a força de vencer

Como é cruel o destino
Que não fez por merecer
Aquele apoio singelo

Mas que sensação neste aperto
Onde o caminhar não profícuo
Nos enegrece a auto-estima

Paramos para descansar
Desta continuada viagem
Sem segredar a palavra

Ali sem mais nada
O único som que ouve
É o de um leve suspiro

Toda a extensão percorrida
Se sente na frustração
Doutra viagem adiada


António MR Martins

imagem da net.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Queixa das almas jovens censuradas


Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola

Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade

Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência

Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro

Penteiam-nos os crâneos ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós

Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo

Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro

Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco

Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura

Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante

Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino

Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte


Natália Correia

Os carreiros dos desígnios


Por entre os vales do medo
Se acorrentam maleitas
Algo podres e sem cura

Pedaços das secas fontes
Onde não surgiram nascentes
E demais pretendentes

Há um fio da corrente
Que não seca o prazer
De continuar por diante

Mas o conflito da dor
Interioriza o mal
Sem outra solução

Há um valor atingido
Por mera coincidência
Entre os regos do vapor

Nada se tende a melhorar
Nas origens e destinos
Dos desígnios que vão surgindo

O pensamento se prende
Aos carreiros impuros
Que nos tolhem a mente

E o restrito concluir
Nos invade o âmago
Com tudo o que irá surgir


António MR Martins

Imagem na net.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Humildade


Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.

Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.

Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura
numa terra sedenta
e num telhado velho.

Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.


Cora Coralina

Vereda dos lamentos


Soa um grito
Lacuna da imperfeição
Por entre os malefícios

Pomo da discórdia
De qualquer geração
Em todas as situações

Eis a contradição
Retrato incongruente
Da regeneração da subtileza

Soa a palavra
Sonora a preceito
Nos vales de todos os silêncios

Aperto vital
No cântico da vida
Nos meandros de qualquer destino

Eis a maldição
Esperada e ansiada
Entre as paredes das vivências

Soa o último lamento
Onde definha a voz
Do simples consentimento

Até quando


António MR Martins

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sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Pedra Filosofal


Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

António Gedeão

Rotundas da omissão



À volta de círculos moldados
que encerram tantas lamúrias,
onde os factos são consumados
e nunca passam das penúrias.

Circulando nos mesmos percursos
que se empalam por tantas voltas,
flagelam-se sórdidos discursos
e se aguardam pelas revoltas.

Fundamentos de circunstância,
ou de mera coincidência,
nos iludem pelo mesmo jeito.

Nas rotundas da redundância,
onde omitem por conivência,
tudo passa tendo um defeito.


António MR Martins

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domingo, 2 de outubro de 2011

Trago a tua dor dentro do meu peito


Trago a tua imagem
no meu horizonte,
negra,
triste.

Trago a tua voz
dentro de mim,
trémula,
silenciosa.

Trago a tua lágrima
nos meus olhos,
que cai,
como um pedaço de alma.

Mas é no peito que trago a tua dor,
porque é no meu peito que te guardo.


Vanda Paz

in livro "Dedos Acesos", página 31, edições AL - Atelier de Letras

Sublime extracto de amor

No sólido fulgor da ventura
onde os ânimos revoltam,
o espaço arde e perdura
entre os pruridos que se soltam.

A água aveluda o fogo
perante névoas de ar preso,
sobram as estrelas a quem rogo
só, estático e indefeso.

Na noite atento ao cintilar
das chamas algo adormecidas
afiro as ondas do teu louvor.

De esguelha luziu o teu pulsar
e se queimam as tuas feridas
renascendo celso tanto amor.


António MR Martins