segunda-feira, 30 de março de 2015

Carla Furtado Ribeiro






METAMORFOSE

é na água dos teus olhos que me nascem
as palavras de gelo com que esculpo
a tua antevisão inexplorada

se não fosse o silêncio percutido do nada

um hiato atravessou-nos a esfera do tempo
como crisálida desfiando a madrugada
e nós cedemos à metamorfose inesperada

Carla Furtado Ribeiro, in “[ EM SILÊNCIOS ]", página 35, edições Chiado Editora, Agosto, 2013.

Seu nome é: Tejo


Imagem da net, em: www.blogplanoc.blogspot.com
 



Espraiando-se verde-maduro na foz
longe de um começo sem sentinelas,
sendo canção, verso e poema em nós
e sentido ibero-luso com sequelas.

Luminosa varanda, ou triste fado,
brilho mágico em voo de gaivotas
constante melodia, destino fadado,
onde cacilheiros apontam suas rotas.

Muitos contrastes suspensos na memória,
empatia geral com relevos na História,
laborioso correr ante tanta proa.

Nas suas águas as gentes chegam e partem
e as saudades em si sempre se rebatem…
cruzando-se com seu abraço a Lisboa.

António MR Martins

terça-feira, 24 de março de 2015

Faustino Xavier de Novaes





SONETO

Aos meus trinta e três anos
(Aos meus trinta e tres annos)

Como os anos, p’ra mim, correm ligeiros !
Como os dias se vão, sem que se contem !
Julgo que trinta e dois anos fiz ontem,
E trinta e três já tenho, muito inteiros !

Foram curtos os meses derradeiros,
Ou vão, sem que as folhinhas os apontem ?
- Eu não creio, ainda que me afrontem,
Que não ouve n’este ano dois fev’reiros ! –

Mas… se o tempo, que foi, não foi perdido,
Se o que outros não verão já tenho visto,
Se tantos, inda moços, têm morrido,

Alegre eu devo estar, porque inda existo ;
Pois se Cristo assemelho em ter nascido,
Se um ano inda viver, sou mais que Cristo.

Faustino Xavier de Novaes (1820-1869), in “POESIAS”, publicadas por António Moutinho de Sousa, página 189, edições Livraria Internacional, de Ernesto Chardron, Porto e Eugénio Chardron, Braga, 1879.

sexta-feira, 20 de março de 2015

Rogério do Carmo





ROTA

Quem me deixou aqui
Perdido em alto mar
Sem timoneiro qualquer nauta
Desnorteado navegante incauta
Em épico trágico naufragar?

Como nestas águas ainda permanecer
Numa viagem que há muito deixou de ser
Sem farol que destino me venha indicar?

Como continuar esta erma busca sem fim
Teimosamente à procura de mim
Sem nunca jamais me poder encontrar?

Paris, 15/12/1992


Rogério do Carmo, in “VAGAS”, página 191, Edição de Autor, Mafra, Maio de 2008.

Azul profundo


Imagem da net, em: www.pt.forwallpaper.com



Do teu sorriso: O maior esplendor!
Perante o aconchego do teu olhar,
tal como um rio exulta o seu rubor
quando, deslumbrando-se, chega ao mar.

Do teu abraço: A maior mensagem!
Enorme grito de fraternidade,
tal como o clique da melhor imagem
traz ao fotógrafo a felicidade.

Do teu beijo: O patamar supremo!
Em pensamentos que ainda temo
por serem cumes da alegria e dor.

Entre tantos gestos de sentir profundo,
integrantes deste humano mundo
que dão consistência, para este amor.

António MR Martins

quinta-feira, 19 de março de 2015

Fernando Pessoa





[CONTEMPLO…]

Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece.
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.

O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo.
Não sei se sou feliz
Nem se desejo sê-lo.

Trémulos vincos risonhos
Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?

Fernando Pessoa (1988-1935),  in “Poesias”, página 122, da Colecção Poesia, Obras Completas de Fernando Pessoa, Edições Ática, Janeiro de 1997.

domingo, 15 de março de 2015

Emanuel Lomelino





GASTÃO CRUZ

Diz-me em que escarpa ou falésia
está sepultado o pai da poesia
e se as pedras que o cobrem
são xisto leve ou basalto pesado.
Revela-me em que penhasco
posso ver a génese dos poemas
que o tempo iletrado corroeu
e a nossa memória não enxerga.
Conta-me os segredos da verve
ou inicia-me no uso do estro
antes que o equinócio negro
resolva cancelar-me os sentidos.

Emanuel Lomelino, in “ Poetas que sou”, página 54, edições Lua de Marfim, Janeiro de 2013.  

Rasteiras governamentais


Imagem da net, em: www.derly.com.br



Na reprimenda a um ideal louco
se disferem mais termos pervertidos,
certeza de terem feito tão pouco
para além dos cortes não prometidos.

Condimento regular conjuntural
retaliação profunda, não construtiva,
esquecendo todo o fundamental
e faz influente parte da nossa vida.

As palavras fazem depender actos
circunscritos a adendas dos factos
introduzidos sem quaisquer afeições.

Tudo pende apenas para um lado
omitindo virtudes de cada recado
onde acarinharam… crianças-multidões.

António MR Martins

sábado, 14 de março de 2015

Amália Rodrigues






ESTRANHA FORMA DE VIDA

Foi por vontade de Deus
Que eu vivo nesta ansiedade
Que todos os ais são meus
Que é toda minha a saudade
Foi por vontade de Deus

Que estranha forma de vida
Tem este meu coração
Vive de vida perdida
Quem lhe daria o condão
Que estranha forma de vida

Coração independente
Coração que não comando
Vives perdido entre a gente
Teimosamente sangrando
Coração independente

Eu não te acompanho mais
Pára deixa de bater
Se não sabes onde vais
Porque teimas em correr
Eu não te acompanho mais

Amália Rodrigues (1920-1999), in “Versos”, página 18, edições Cotovia, coordenação, nota final e cronologia por Vítor Pavão dos Santos, 3.ª Edição, Outubro de 1999.

quarta-feira, 11 de março de 2015

Sandra Nóbrega





EXCLAMO ESTE AMOR

Exclamo este Amor
sem qualquer interrogação
afirmado entre vírgulas da Vida
e os parágrafos do Coração.
Busco em todos os Verbos
a conjugação deste Sentir
onde o Presente…
És Tu!
O Passado,
a Eternidade de que és feito
e o Futuro,
a Esperança do Amanhecer ao teu lado!

Sandra Nóbrega, in “A manhã de Ser”, página 26, edições Lua de Marfim, Maio de 2014.

o valor da vida


Imagem da net, em: www.gfilleti.blogspot.com


na árvore
a intimidade
do cómodo acolher
ante o tronco da vida
e a seiva plena
da sede
que nos alimenta

todos os veios
e nervuras
interpretam o sentido
das coisas

a árvore é a casa
a casa é a vida

a vida é o expoente máximo
da existência

António MR Martins

segunda-feira, 9 de março de 2015

Vinícius de Moraes





POÉTICA

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
- Meu tempo é quando.

Vinícius de Moraes (1913-1980), in “Nova Antologia Poética”, selecção e organização: António Cícero e Eucanaã Ferraz, página 156, edições Companhia das Letras, 2003.

domingo, 8 de março de 2015

Lurdes Breda





PENSAMENTOS AZUIS

O cortinado de crepe ondulava, tocando de mansinho
no ramo de violetas, em vaso de cerâmica azul.
Pela janela, entravam borboletas cerúleas,
que pareciam pedaços de céu a palpitar.
No prado fresco, coberto de flores aniladas,
brincavam meninas brancas, com tranças loiras
e vestidos azuis. Davam-se as mãos pequenas,
numa roda perfeita, e acordavam o dia
com gargalhadas da cor do céu…
Apanhavam amores-perfeitos e alindavam as rendas
dos vestidos folhados. Comiam morangos e amoras silvestres,
tingindo de rubro as boquitas em forma de coração.
Ao longe, o mar turquesa embalava barcos solitários.
As ondas de césio beijavam, com ardor, a areia fina…
E faziam coro com as gaivotas estridentes.
O poeta molhou a pena na tinta azul,
coloriu os olhos de azul,
encheu o coração de azul
e, de azul, fez o poema!...

Lurdes Breda, in “Asas de vento e sal”, página 47, edições Mar da Palavra, Junho de 2005.    

O sentido para o poema


Imagem da net, em: www.cravos.florlandia.com



És o poema!...
a força do grande mar ,
a verdade e a razão,
o persistente desbravar,
perante tanta opinião.

És o poema!...
o passo de dança, o embalar,
o pleno instante da emoção,
a andorinha no seu voar,
a mais melodiosa canção.

És o poema!...
a palavra e a sua magia,
o panorama da felicidade,
o romper com ousadia,
o caule da flor da liberdade.

És o poema!...
a plenitude de tanto sentir,
a certeza de querer ficar,
a fuga à intenção de partir,
a dissertação pelo verbo amar.

António MR Martins
 
Dia Internacional da Mulher, 8 de Março de 2015.

sexta-feira, 6 de março de 2015

João Valente





LONGE DE TI

Longe de ti, em triste solidão,
Eu vejo deslizar, devagarinho,
Os dias longos, e o meu coração
Recorda-se de ti, o pobrezinho.

Meus olhos querem ver-te, mas em vão;
Minha alma imagina-te aqui perto;
Depois, meu Deus, que grande decepção,
Porque em redor de ti tudo é deserto.

E assim nesta amargura vou vivendo,
Longe de ti, amor, eu vou sofrendo
Esta vida tão cheia de agonias;

Quem me dera ser como o pensamento,
Correr tão de repente como o vento,
P’ra estar ao pé de ti todos os dias.

João Valente (1924-1985), in “Isto, Aquilo e o Resto”, página 19, edição da Câmara Municipal de Ansião, 1987.

segunda-feira, 2 de março de 2015

Teresa Brinco de Oliveira





Livro em Branco

Não me apetece falar de amor
mas ia contigo ao fim do mundo.

Observo o livro em branco
que me ofereceste um dia.
Folheio-o na esperança de ver
em alguma página uma marca tua
mas o livro era branco, tão branco
como o silêncio em tempos
e no tempo não se resgataram flores,
nem odores, nem palavras. Somente as minhas
o tempo não olvidou. Nem eu.

.

Ainda escrevo com um lápis
as memórias do silêncio. Do teu silêncio

tão guardado na história dos meus dias, e no branco esboço sentidos
que procuro conservar na estreita linha dos sonhos.

Ia contigo ao fim do mundo
se me dissesses  que o fim do mundo eras tu

da primeira à última página.

Teresa Brinco de Oliveira, in “Laços de Luar e outras histórias”, páginas 70 e 71, edições Edita-Me, Dezembro de 2014.   

Evidências e consequências


Imagem da net, em: www.reginafarias.blogspot.com



Leve sentir do ponto miraculoso
onde tudo, a gosto, se retoma;
aumentando tal querer generoso
que a falsa modéstia jamais doma.

Amplitude da frenética procura
perante tantas ambições desmedidas,
relegando à ínfima estatura
a esperança nas coisas perdidas.

Entontecem-se caminhos duvidosos.
Incentivo de conceitos rigorosos,
que apontam dúvidas em catadupa.

Margens curtas, em rude desesperar,
acicatam tamanho mau congeminar
que já nem um rebuçado se chupa.

António MR Martins

domingo, 1 de março de 2015

José Régio





CÂNTICO NEGRO

«Vem por aqui» - dizem alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: «vem por aqui»!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam os meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: «vem por aqui»?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar ao vento,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: «vem por aqui»!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!

José Régio (1901-1969), in “Cântico Negro, Antologia Poética”, selecção e organização de Luís Adriano Carlos e valter hugo mãe, com estudos introdutórios de Luís Adriano Carlos, páginas 22 e 23, edições quasi, 1.ª Edição, Setembro de 2005.