quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Pandemia


 
78 - José-Augusto de Carvalho


Não queirais ler nestes versos
os mundos que vos afligem…
P’los caminhos mais diversos,
haveis de encontrar, dispersos,
mais versos de insana origem.

Versos de amor e de dor,
de sonhos e pesadelos…
Qualquer, seja lá quem for,
mesmo até sem ser doutor,
há-de saber escrevê-los…

Já é uma pandemia
esta ânsia e versejar!...
E, distante, a Poesia,
ah, como ela se arrepia,
sozinha, no seu altar!

José-Augusto de Carvalho

in livro “O Meu Cancioneiro”, página 43, edições Temas Originais, Coimbra, 2009.
 
 


Controlada permanência

 
Tiniguibah (Filipinas), by Gonçalo Lobo Pinheiro.

 
Demoras-te onde se demoram
as raízes das árvores,
mesmo que arrancadas
do seu solo acolhedor.

Demoras-te no conceito
da tua razão
e permaneces
nesse translúcido sentir,
sem atitudes
arremessadoras,
para tanta inexplicável
inveja
que te pune sem mácula.

Demoras-te assim,
nesse teu
correspondente saber,
na perentória
decisão
do teu temporal permanecer.

 
António MR Martins

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

DO VENTRE ATÉ À FOZ






77 - Eufrázio Filipe






Neste chão de aceiros improváveis
movimentaram-se barcos e afectos
sementes que exultam
memórias remos e passos

Ainda hoje este espaço
de fragatas faluas e sapais
é exíguo
para tantas vozes que se erguem
como os pássaros

Neste pomar de águas correntes
ascendem perfumes de revérberos
que alumiam margens
e temporais

do ventre até à foz

 
Eufrázio Filipe

in livro “No Outro Lado do Cais”, página 30, edições Temas Originais, Coimbra, 2011.
 
 

9.

 
Busto de Luís de Camões (Macau), by Gonçalo Lobo Pinheiro.

Há um verso na revolta

E outro na sua dimensão

Onde o poeta exulta

Toda a sua inspiração

 

História se desenvolve

Nas palavras bem atentas

E a areia se dissolve

No mar de tantas tormentas


António MR Martins

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Choro o Mundo





76 - Dina Ventura








Choram as pedras
pelas coisas que não foram.
Choram os caminhos
pelo tempo que não andam.
Choram as árvores
pelo vento que não sentem.
Choram os rios
pelos peixes que morreram.
Choram as aves
pelo ar que lhes tiram.
Choro eu
Por não saber o Tudo que existe,
Por não conseguir saber porque choro,
Por não chorar.
Choro sem lágrimas visíveis.
Choro doloridamente o que perdi.
Choro o que se ausentou de mim.
Choro
sem saber se choro o que devo.

 
Dina Ventura


desespero

 
 

no dissabor
te apoquentas

quase rastejas
pedindo perdão

nada mais há
que consigas alcançar

voar era mais fácil

mas tuas asas
foram cortadas à nascença

 
António MR Martins

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Encontro




75 - Alexandra Bello Patronilho





Encontro-me no jardim da morte,
Onde passeiam as minhas emoções decapitadas…
Onde num esgar de loucura, acreditei que viver era possível.
Encontro-me onde nada existe.
E vejo ao fundo do jardim o escarnio da vida afundando todos os meus sonhos,
Nesse leito perpétuo que alguns chamam mágoa.

Encontro-me num barco naufragado.
Onde navega o que resta de mim
Preâmbulo de uma felicidade anunciada...
Onde no porão moram os restos das tuas verdades,
Onde entre o cheiro fétido das promessas, recolho o que resta de ti,
Um olhar transparente onde quis morar,
Umas mãos onde quis descortinar a minha morada,
Uma boca onde quis ressuscitar… todos os dias!

Encontro-me dentro de mim
Num impossível resto de um querer acreditar que me rasga,
Que se entranha ate as vísceras do meu interior devastado.
Não é laço da corda que ao perder-te me enforca,
Não é perder a vida que me assusta,
É encontrar a morte, acaricia-la e dizer-lhe baixinho…
“ Ainda bem que chegaste! “

 
Alexandra Bello Patronilho


Resquícios da ventura adormecida

 
Aviário de Hong Kong, by Gonçalo Lobo Pinheiro.


Soam bitolas perdidas
Nos rastos da incongruência
Bandeiras do esquecimento

Ultraje compensador
Ultimando outros lavores
Na doença assaz patente
Que invade tantos corpos
Metamorfoseados no tempo

Dissabores de alimento
Onde se secam as sílabas
Em percalços de tanta dor
Por tanto assentimento

Paladares sem outro sabor
Que não sejam amargura
Nesta gesta demais sofrida
Respirando aos soluços
Numa contenção desmedida
Intragável a cada segundo
Onde a espera então suscita
O receio de tanta demora

Jaz o sentido do grito
Num reclamar contínuo e forte
Onde dormem os pruridos
Que nos orientam o norte

Há um afago perdido
No caminhar sem sentido
Na crise que nos atormenta

A solução está escondida
Na luta que não aparece
Neste povo que adormece
Hipnotizado pela alma
E pelas vozes do mundo

E nesta acalmia madura
Rastreio de tantas mágoas
Sua ambição perdura
Sonhando com a liberdade

E esse sonho acontece
No voo da planura
Onde as aves fazem silêncio

 
António MR Martins

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Chuva de Amor


 
74 - Helen De Rose


Molha os caminhos
Da saudade
Inunda as esquinas
Do coração

A chuva cai
Da louca tempestade
Chovendo uma só
Emoção

Guarda chuva
Guarda sagacidade
Nessa rua da saudade
Na contra mão

Molha a divina
Claridade
Na chuva de lágrimas
Derramadas pela paixão

Helen De Rose
 
 

Regalem-se

 
Imagem da net, em: www.genuardis.net
 

Se regalem
no olhar da envolvência,
em que o abraço do afecto
surge com empenho e saliência.

Se regalem
por toda a ajuda premente,
onde um abraço maior
é dado de igual forma a toda a gente.

Se regalem
pela simples palavra amizade,
em que o abraço concreto
tonifica qualquer felicidade.

Se regalem
num olhar sensual e terno,
onde o abraço do amor
nos aquece em pleno inverno.

Se regalem
pelo vazio discurso airoso
de quem manda calar o vento
num modo assaz melindroso.

Se regalem
num hino à fraternidade,
onde uma mão nos acolhe
em gesto idêntico à liberdade.

Se regalem
desta e daquela maneira,
com o rir a pleno gosto
pela (im)precisão de toda a asneira.

Se regalem
mas não emprenhem pelos ouvidos.

 
António MR Martins

sábado, 23 de fevereiro de 2013

NON QUERO ESMORECER





73 - Asun Estévez








Non quero esmorecer
co ollar baleiro
e as mans núas.
Quero sementar sorrisos
nas bocas envilecidas.
Espallar as voces.
Que falen os silencios
afogados nas gorxas.
Que os fantasmas que cabalgan
se confundan coas rochas.
Que se esmigallen no camiño
os cans esfameados
que baixan do monte.
Que renazan as pedras.
Que medren as primaveras.
Nesta noite
esnaquizarei os xemidos.
Neste tempo
son supervivente da esperanza.
Neste mundo
proclámome guerreira.

Non quero esmorecer
co ollar baleiro
e as mans núas.

 
Asun Estévez


Traquinices usurpadoras

 
Banguecoque (Tailândia), by Gonçalo Lobo Pinheiro.


Empertiga-se a afinidade
pela resoluta necessidade,
perante um consolo tão sofrido.
Razoabilidade desconcertante
num traçado algo aliciante
para um singelo lugar cativo.

Quase nada perdura por eterno
por ente um verão e um inverno,
pelo restauro desta incerteza.
Regressando ao poiso inicial
não se conhecendo mais outro final
por onde desbrava a natureza.

No paleio grito da gente povo
se descobrirá outro mundo novo,
desmoldado na irrealidade.
Rastreio dum suporte de transição
devaneio doutra qualquer presunção,
fecundo apelo da felicidade.

De nada valem os gritos na fonte
ou outra mensagem que tal desponte
no válido direito de reclamar.
Nada mais se segue pela demanda
pois a força de quem pode e manda
nunca mais se poderá modificar.

 
António MR Martins

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

ESPAÇO VAZIO, TU...




72 - José Silveira







Senti, no seu ir quase abrupto,
o tanto que levaste de um sonho;
de palavras quase poemas,
de sorrisos quase canções,
de um mar quase oceano.

E no úmido das tuas lágrimas
que ainda estão no chão, elas,
cravadas ficaram entre as pedras,
e nas marcas dos passos teus.
A rudeza das visíveis sequelas.

Silêncio imposto, sua voz inerte,
embargada, reprimida, a sós.
Inaudível, o lamento à distância,
fazendo insípido este momento
da grande falta que sinto de vós.

Mas teu olhar é presença, é semente,
paira no ar, a candura do teu rosto,
que sustenta essa minha poesia
amenizando esse incessante canto,
desgosto que sinto; na falta que tu me faz.

Inconformado; sou desta sina,
Da momentânea clausura, casulo.
A qual tu humildemente se inclinou,
nas metamorfoses, e nas vias da vida.
Que somente as belas borboletas têm.


 
José Silveira

Tombam águas pesarosas

 
Imagem da net, em: www.deolhonotempo.com.br
 

A água tomba
Nos campos da desolação
Moldando
E desmoldando
As terras desesperadas

Há partículas
Dum fértil chão
Desconsolado
Em tanto deteriorado asfalto
Da profunda
Constatação

Tudo se amedronta
Num cinzento
Assaz tristonho
E doentio

Pouco sobra
Da contemplação
Mesmo no aguardar
Do pleno desanuviar
Das águas pendentes

 
António MR Martins

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

AUTO ANÁLISE





71 - Vóny Ferreira








Se vires o mar nos meus olhos
Açoitar as rochas brutalmente
Barafustar num ruidoso murmúrio
Não te assustes…
Talvez seja o grasnido de uma gaivota
Ferida cruelmente no cais
Por um marinheiro bêbado
Cansado de fugir aos temporais…
Se vires uma papoila nas minhas faces
Desabrochar numa cadência firme
Florescer num rubor momentâneo…
Não te assustes…
Talvez seja a minha desinibição
A ruir como um castelo de areia
Aos pés de uma criança atónita
Com a onda que a assustou…
Talvez seja o que realmente sou…
Um pouco de sonho e medo
Um pouco de ansiedade e choro
Um pouco de planície verdejante
Que o Outono da vida modificou…!

Vóny Ferreira

in livro “Cascata de Sílabas”, página 68, edições mosaico das palavras editora, Porto, Junho de 2009.

Pranto eloquente

 
Imagem da net, em: www.todateen.uol.com.br


Há um dorido declive na ganância,
Pelo rastreio da dor inconformada;
Que emerge com a palavra decorada
Onde o fogo incendeia tanta ânsia.

Facho no horror da incongruência,
Perante tanta bofetada mal levada
E pela liberdade que esteve fechada,
Desígnio dos vícios da imprudência.

Morrem todos aqui ou noutro lado
Nas pelejas da vida sem mais rigor,
Que não impera o nobre decepado.

Se alguém ressurge por mero favor,
Sente logo seu coração despedaçado
Quando se ultraja um simples amor.  

 
António MR Martins

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

É tarde amor


 
70- Carlos Val


Soçobra do fundo do espelho
Um rasgo dos teus olhos
Em lágrimas laminadas
Encarcerado num tear de folhas
Onde permaneço encolhido
No linho de um Outono imprevisto

Não há nada a fazer
Resta-nos o restolho do braseiro
E as fagulhas que partilhamos
Enquanto o sono não arrefece
Os corpos no éter da casa

 
Carlos Val

in livro “ Nono sentido”, página 40, edições Temas Originais, Coimbra, 2012.

vozes em silêncio

 
Guerreiros de Terracota (Xi'An, China), by Gonçalo Lobo Pinheiro.
 

corta-se o silêncio
da voz inquieta
augurando
rancores intrometidos
acomodados pelo tempo.

esvoaça o grito
pelos trilhos da glória
onde o vento é dono
de todos os percalços
inundando
o aroma silvestre
de agudizados tremores.

caem as folhas secas
do mito
cruzando-se decepadas
no tempo desencontrado
de todas as palavras.

sucumbem os mortos
com os vivos a seu lado
num percurso alado
onde a saliva silencia
o defeito da voz pendente
pela rouquidão descrente
no receio de tanta demora.

 
António MR Martins

Foi publicado o meu poema "Paz do Pensamento", na Roménia, numa antologia a ser distribuída internacionalmente

 
Capa da Antologia da revista Orizont  Literar Contemporan / Contemporary
Literary Horizon Anthology, 3/2012.

Na terceira Antologia, 2012 (edição anual) da revista, de origem romena, Orizont Literar Contemporan / Contemporary Literary Horizon Anthology, foi publicado o meu poema "Paz do Pensamento", em português e nas respectivas traduções de espanhol, inglês e romeno, um breve perfil cultural, em inglês e romeno e a minha foto, nas páginas 33 e 34.
 
Esta edição internacional fez inserir no seu conteúdo diversos autores, entre prosa e poesia, de vários países do mundo, tais como: Itália, Grã-Bretanha, Canadá, Finlândia, Estados Unidos da América, Índia, Bélgica, México, Bangladesh, Espanha, Cuba, Chile, Uruguai, Brasil, Grécia, Roménia, Colômbia, Argentina, Alemanha e, claro, Portugal (para além de mim, Abel Machado da Cunha).
 
Foi um prazer enorme acolher, em minha casa, um exemplar desta edição e buscar no seu interior as minhas singelas palavras.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

TEMPO VELOZ






69 - Edilson José








Dorme a criança

nos braços da mãe.

Nos braços da noite

a criança triste

- Mãe da criança
que dorme
nos braços da mãe -

roda na ciranda

da vida veloz.

 
Edilson José


Imobilizado sentir

 
Imagem da net, em: www.baixaki.com.br

A luz que serpenteia
os alvos da sedução
floresce na ilusão
ou na prisão da teia
do sangue em sua veia
ofuscando o amor
crescido da grande dor
perante ser abismado
de semblante saturado
num sentir bem sofredor.

António MR Martins

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Sopro divino





38 - Emílio Lima







deixem   pulsar os corações
um sopro de vida
que desde pequenino
não me deixais desfrutar

um sopro divino que fará
minha alma voar
voar e voar para lá do horizonte
onde não se fala
do sofrimento nem da dor
da intriga nem da xenofobia

lá onde haja equilíbrio
entre os mais fortes e os mais fracos
os ricos e os pobres
onde é dada a palavra aos mudos

clamo por um sopro divino
que me levará para o mundo dos anjos
um mundo onde só se fala de amor

 
Emílio Lima

in livro “ Notas Tortas Nas Folhas Soltas”, página 48, edições Temas Originais, Coimbra, 2010.
 
 

O tempo que a vida (não) tem

 
Imagem da net, em: www.drinkdeideias.blogspot.com
 

Há um sentido presente
numa palavra sentida
e a verdade não mente
nesta mensagem sumida.

Os dias que tem a vida
na realidade não os sei,
se dois de forma sofrida
se mais nunca tal contarei.

Se o Carnaval tem só três
como dizem os antigos,
desses dois nunca se desfez
por onde vêm os perigos.

Tenha o tempo que tiver
em anos, meses, minutos,
só conta quem mesmo quiser
mas vá lá, não sejam brutos.

Certeza nunca teremos
e o tempo é o que for
vivam os dias que vemos
sempre com muito amor.

 
António MR Martins

domingo, 17 de fevereiro de 2013

É urgente o amor




67 - João Rasteiro








O amor ferve de uma ferida exangue
de foles de corpos frescos
de caminhos e sonhos dilatados
de vertigem de ser só sede
de espaços que se tornam pele
de palavras de gume branco,
o rumor azul.

Há amor carregado de sol e águas cegas
e há amores como lágrimas fulgurantes
como um eco de um princípio inacessível.

O amor vem de corações fragmentados
de um sabor para além de tudo
de uma disseminação de vozes
de bocas e fogo unido à terra
de uma força feroz na paz dos pulmões
de torres de sílex negro,
animais insólitos.

Há amor aberto de imensas pedras cruas
e há amores entre a parede e o silêncio
como linhas paralelas de pequenos círculos.

O amor forma cúpulas diáfanas
de livros ilegíveis na sombra
de arcos sob grandes gargantas ocultas
de um corpo côncavo em luz
de um tempo concreto no respirar do verbo
de profunda ausência das raízes,
a chama da terra.

O amor dilata-se e dilata-nos de veias ateadas,
invoca e insufla a pele sagrada de sal aceso na água,
é serpente que morde a própria cauda diurna,
dilacera palavras nuas por outras palavras desnudas,

mas, não se pode adiar mais o amor indivisível
que rasga o mundo feérico na dobra aberta dos dedos,
eles, íngremes no cintilante jade onde nasceu a magnólia.

Não se pode adiar mais o coração do amor primordial
que acende o tempo no lume venerável das pirâmides,
essa nudez de memória álgida que nos aflora a boca,
estremecendo de melancolia os corpos inóspitos de Deus,

a conciliação do corpo e da sílaba, desfraldada em sua haste.

.
João Rasteiro