quarta-feira, 1 de abril de 2015

António Gedeão





Poema do fim do mundo – 15

Um homem grosso e curto caminha na penumbra.
Recolhidos os beiços como um golpe,
as pupilas varrendo os ângulos todos
num fogo de barragem.

Cauteloso, procura as melhores pedras
onde possa poisar os pés descalços,
pés desconformes, toscos e nodosos,
crestados pelos sóis, e arranhados
p’las areias do mundo que pisaram.

Pára, e respira.

A hora é de crepúsculo, quase noite,
com nuvens baixas, túrgidas e negras,
que em rolos se atropelam, e em farrapos
se alastram no horizonte,
galgam, investem, lutam, cabriolam,
como toiros de fumo, bisontes de fuligem.

Até onde o olhar trespassa o ar cinzento,
em frente e atrás, tudo são pedras, pedras,
pedras e pedras,
calhaus rolados onde os pés se ajustam
palpando a forma, tenteando o jeito.

Foge o pesado corpo ao equilíbrio estável,
o ventre se lhe espeta e em vão esbraceja
batendo o ar como animal aflito
que não quer afogar-se nem render-se.

Pára e respira,
que o arcaboiço é grande e o ar é pouco.

Na quase noite avulta a espuma branca
das vagas que o alcançam,
lavam-lhe os pés e cobrem por instantes
a faixa imensa das roladas pedras.
Sentem os pés a água, e compreendem-na.
Na alegria do encontro o corpo exalta-se
e num gozo frenético
desafia e defronta o chuveiro das vagas
que embatidas nas rochas o encharcam.

Que chatice, pá!

Está cansado mas ri-se, e até cantava
se na penumbra alguma corda tensa
vibrasse para ele.
Mas os sons que lhe chegam são soturnos,
roucos e ásperos, surdos e cavados.
Só a espuma das águas é graciosa,
irrequieta e ágil. Entre as pedras
a babugem fervilha e se insinua.
Só a espuma é graciosa. E que se faz com espuma?

Pára, e olha p’ra trás.

Que vastidão imensa! Que teatral espectáculo!
Relâmpagos histéricos, caprichosos e rápidos,
cegas assinaturas rabiscadas à pressa,
fundem o escuro céu e em golpes o estilhaçam.
Na luz intermitente iluminam-se as vagas,
dorsos fluorescentes que se encurvam e dobram
como peças de pano, salpicadas
de gemas que se espraiam e se somem na areia.
Mas não! São panos mesmo! Brocados e cetins,
alcatifas, e tendas, e capas, e gibões,
dalmáticas e véus, paramentos e estolas,
tudo perdida a cor na pavidez dos raios.
Enfileiram-se as rochas na lonjura da vista,
penedos singulares como proas hirsutas.
Mas não! São proas mesmo! Restos de galeões,
enxárcias, gurupés, papafigos, traquetes,
mastros, lemes, escotas, brandais e mastaréus.
Tudo madeira gasta que a impulsão das águas
conserva eternamente a boiar na memória.
 
Que lixarada, pá!

As vagas vão e vêm na cadência do sangue
que ao coração acorre,
e ecoam bravamente como vozes antigas,
brados, imprecações, emparedadas vozes,
que em espasmos se prolongam acentuando a origem.
São vozes silabadas, palavras que circulam
entre os destroços, e roem mais que a água.

de Portugal e dos Algarves,
daquém e dalém mar em África,
Senhor da Guiné,
da conquista, navegação e comércio
da Etiópia,
Arábia,
Pérsia
e Índia.

Redonda voz de bronze, rolando sem atrito
na suspensão do vácuo.
Bola de som tangente às nervuras da abóbada,
desce a roçar as lajes e às alturas regressa.

Quer caminhar de novo mas os ecos e os raios
espasmam-lhe os ouvidos e incendeiam-lhe os olhos.
Tem frio,
e as palavras tiritam-lhe na boca.

As armas, pá.
E os barões, pá.
Assinalados, pá.

Um meteoro deflagra, inflama o mundo côncavo,
ilumina os destroços e,
no céu,
parecem-lhe, talvez, quem sabe de figuras,
braços que gesticulam, discutem qualquer coisa,
barbas enoveladas sobre o peito,
cabelos ondulantes sobre as costas.

O gajo gordo é Júpiter,
e a gaja ao lado é Vénus.

Ondula-lhe a barriga em farto riso
e os lábios lambe com serôdio gozo.
Num arremesso à frente o corpo lança
e do novo procura as melhores pedras
onde possa assentar os pés nodosos.

Ó glória de mandar! Ó vã cobiça!

Pedras e pedras só a vista alcança
onde a força do mar encapelado investe.
O mar, e sempre o mar,
o mar que traz os peixes, que é estrada de navios,
e as pedras que dão pão, pão duro como pedras.

António Gedeão (1906-1997), in “ Poemas Póstumos”, páginas 51 a 62, edições João Sá da Costa, colecção poética, 5.ª edição, 2000. 

 

   

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