quarta-feira, 22 de abril de 2015

Joaquim Pessoa





abismo
 
Caminhei para o sol. Tinha acabado de escrever um desses poemas em que as próprias palavras nos ameaçam, e a voz doía-me. Escutei o grito dos mastros, batidos pelo vento. Uma água de cinza devorava as telhas e um luto desapiedado tinha cerrado todas as portas. Não me habituara ainda a esta inquietação obstinada, ao frio tremor da árvore. O cérebro varria definitivamente as folhas sobre a água. Era um outubro que amanhecia nas paredes mais inquietas, com dois raios de sol presos à magra recordação dos exércitos que habitam as secretas veias da terra. As pedras conheciam-me o desgosto e, delas, o poema ia recolhendo algum remédio. Não precisei que o som me impressionasse a imaginação ou me tocasse o rosto. Subi lentamente ao cântico, com os braços diluídos na terrível espera que os gestos haviam construído, e já as lágrimas gritavam longamente a mais fantástica morte desenhada na boca.
 
Joaquim Pessoa, in “Guardar o Fogo”, a morte absoluta, página 159, Edições Esgotadas, 2013.


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