abismo
Caminhei para o sol. Tinha acabado de escrever
um desses poemas em que as próprias palavras nos ameaçam, e a voz doía-me.
Escutei o grito dos mastros, batidos pelo vento. Uma água de cinza devorava as
telhas e um luto desapiedado tinha cerrado todas as portas. Não me habituara
ainda a esta inquietação obstinada, ao frio tremor da árvore. O cérebro varria
definitivamente as folhas sobre a água. Era um outubro que amanhecia nas
paredes mais inquietas, com dois raios de sol presos à magra recordação dos
exércitos que habitam as secretas veias da terra. As pedras conheciam-me o
desgosto e, delas, o poema ia recolhendo algum remédio. Não precisei que o som
me impressionasse a imaginação ou me tocasse o rosto. Subi lentamente ao
cântico, com os braços diluídos na terrível espera que os gestos haviam
construído, e já as lágrimas gritavam longamente a mais fantástica morte
desenhada na boca.
Joaquim Pessoa, in “Guardar o Fogo”, a morte absoluta, página 159,
Edições Esgotadas, 2013.
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