segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Velório de desabafos



Sentei-me e quedei-me, sereno, meditando pelo infinito. O burburinho centralizava a fixação auditiva enquanto a dor, também, assolava alguns dos presentes. O espaço da capela ecoava os sentidos das vidas, as passadas, as existentes e as vindouras, na roda efémera de todas as vivências. As velas ambientavam os meios e quem chegava dirigia-se à urna, onde o cadáver estava exposto aos olhares dos visitantes, e benzia-se depois de salpicar de água benta o corpo moribundo, subtraído do espírito que, possivelmente, observaria todos os passos que tendiam a homenagear o seu anterior corpo, defunto. Perante tal desenrolar vão-se fazendo conversas. Uns falam mais alto outros em tons mais baixos, quase segredados. Alguém comenta para outro, num grupo de quatro ou cinco pessoas, “o negócio é que vai de mal a pior…”. Do lado contrário outras expressões acumulam o prurido na sala. Nestas ocasiões sempre se fala de tudo um pouco, e às vezes de nada, de futebol, da política, dos colegas, da televisão, das viagens e até do falecido: - Que boa pessoa que era! São sempre os melhores que partem primeiro! Vai cá fazer muita falta! Alguém que ouve comenta em surdina, para o seu companheiro de acesso àquele local: - Olha que grande lata! Andava sempre a dizer mal do morto, enquanto vivo, agora diz que era a melhor das pessoas. Hipócrita! Todos sabemos que há um fim para tudo, só que tal se diferencia apenas nos contextos.

 
António MR Martins

A morte não tarda




25 - Lurdes Dias (Cleo)







São as sombras que se arrastam na noite escura…
A vida que não se vive
Enquanto a dos outros adormece…

São as almas sem rumo
Que se passeiam pelo infinito
Do deserto das suas vidas… perdidas…

Fruto das escolhas malditas!...

Mais uma noite
Mais uma penitência
Mais um festejo de dor… sem amor…

E lá vou eu pela rua
Absorto… meio morto…
Vou de encontro a abismos… esquecidos…

Acho que me perdi no caminho
Não sei o que faço aqui…
Só sei que me perdi… de mim…

Avisto a morte ali ao fundo
A única certeza que me resta
Desta vida que não tenho

Perdi tudo… tudo…
Fiquei sem nada… um farrapo de gente
E ela não tarda…

 
Lurdes Dias (Cleo)

in livro “ In Pulsos”, página 35, edições Temas Originais, Coimbra, 2009.

 

domingo, 30 de dezembro de 2012

Rua da solidão

 
Kaiping (China), by Gonçalo Lobo Pinheiro
 

Na rua da solidão não há transeuntes acomodados à troca de palavras, em viva voz, nem a resposta a uma pergunta por iniciar. Na rua da solidão não há afagos nos rostos da presença, sem cumprimentos entre mãos que não existem. Na rua da solidão não há abraços estruturados, nem preceitos inacabados. Na rua da solidão as sombras são o desfile entre as luzes que a acendem, no resfriar de cada noite. Ali não há o prurido nem o silêncio. Ali não há a alegria nem tristeza. Ali não há nada a acontecer. Ali só se espera que a solidão termine com a sua inacabada resistência.

 
António MR Martins

IMAGEM REFLECTIDA






24 - Maria do Rosário Loures



 
mostra-me o teu sorriso
ainda hoje
com dentes de leite
coloridos

mostra-me os teus olhos
ainda hoje
pela brisa do mar
salpicados

mostra-me a tua alma
ainda hoje
pela fresca geada
devorada

não me mostres quem não és
para poder por novos caminhos
espinhos de rosa
chocolate amargo caminhar

 
Maria do Rosário Loures

in livro “Um sumário da minha vida no século passado”, página 28, edições Edium Editores, S. Mamede de Infesta, 2010.

sábado, 29 de dezembro de 2012

Quedado esperava o fim



Na surpresa da inoperância e sem qualquer hipótese de dirimir ideias se restringiu à sua insignificância. Quase se sentiu liquidado na vida sem incentivo para outros anseios e sem perspectivas de poder exibir algumas das suas virtudes, que apesar de tanta incompreensão negativa, realmente possuía. As ameias de todos os castelos a conquistar cada vez se apresentavam mais altas, ultimando-se por inalcançáveis. Uma mescla de sensações pulsava alertas para os dissabores que se perfilavam em catadupa. Perante tantos factos nulos decidiu não avançar com mais ideias e projectos, que ninguém ousaria aceitar. Apelou aos nadas que lhe rodeavam os pensamentos e a conceitos irrelevantes se quedou, sem mais nem menos. Era o princípio do seu fim.

 
António MR Martins  

NO DESERTO




23 - Maria Antonieta Oliveira








 
No deserto árido e quente
me perdi de ti.
Em cada grão de areia
procurei teu rosto
Em cada pegada
procurei teus passos
No sol
quis ver teu olhar
quis ver tua boca
e teus lábios beijar.
Caminhei sem destino
perdida e sem caminho.
Já noite
chegou o luar
e eu já cansada
de tanto te procurar.
Larguei os sapatos
Despi-me de mim
Repousei o meu corpo
carente de ti
No deserto frio
tapei o meu rosto
Nem água tinha
para lavar o desgosto.

 
Maria Antonieta Oliveira

in livro “Encontro-me nas palavras”, página 36, edições Temas Originais, Coimbra, 2012.   

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Questiúnculas



no alpendre
onde um exíguo estendal
tanto estende
múltiplas farsas suspensas
se revelam

vão oscilando
entre prévias contradições
enraizadas de celeuma

(im)prováveis
quiçá
deploráveis
exibindo-se
em eixos de várias configurações

irremediavelmente

 
António MR Martins




22 - João Carlos Esteves






 
 
Abri as portas da ilusão
e deixei-me por ela arrastar
na esteira de um vento irreal
cruzando planícies dormentes
num sonho em gestação

Fui sopro rebelde nos ventos
dancei em montanhas douradas
e afaguei as folhas das árvores,
envolvidas por chuva outonal,
arrastadas nas águas tombadas

Imbuída nas nuvens velozes
fui lágrima perdida nos ares
percorri distâncias sem nome
alcancei os limites dos mares
e verti-me em silêncio e em paz

Por fim a ilusão esmorece
no repousar do vento e das chuvas
entrelaçada em memórias distantes
de momentos gravados nas cinzas
dos tempos tecidos nas brumas

 
João Carlos Esteves

in livro “ Absolvição”, página 22, edições Temas Originais, Coimbra, 2011.  

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Presépio

 
"O Presépio", no lar.


Uma luz brilhante nos traz
esperança redentora
entre céu e campos de paz
nesta aura salvadora

correm as águas das fontes
os rebanhos nas pastagens
e na subida dos montes
se acolhem as paisagens

há vida na grande aldeia
a cada cantar do galo
na canção do novo hino

às mentes vem a ideia
tanto ou mais do que falo
já (re)nasceu o Menino

 
António MR Martins

domingo, 23 de dezembro de 2012

Feliz Natal de 2012 e Bom Ano de 2013.


Feliz Natal e Bom Ano de 2013 para todos os amigos, leitores e visitantes deste blogue, em geral, e suas estimadas famílias.

Meu abraço.






21 - Paulo Afonso Ramos







Silencio-te. Noite triste
só a lua me sorri
plantada na escuridão
que aglomera a minha condição.

Silencio-te. Sentimento impune
que respira e sobrevive.
Silencio-te. A razão que nos une
e assim afasto a voz.

Silencio-te. Num silêncio cúmplice
silencio-te e assim me deixo morrer!

 
Paulo Afonso Ramos

in livro “Caminho da Vontade”, página 28, edições Temas Originais, Coimbra, 2009.

sábado, 22 de dezembro de 2012

Um artigo sobre mim na edição nº. 5 da revista AKN online


António MR Martins no nº. 5 da revista, sobre a Arte e a Escrita, AKN online

Nas páginas 27, 28, 29, 30, 31 é publicado um artigo sobre a minha pessoa, como autor, onde se incluem alguns poemas meus.

http://issuu.com/akn-online/docs/akn_n_5_novembro_12?mode=window&backgroundColor=%23222222


Quando falam os corações



Nos passos perdidos onde o apressar dos sentimentos estanca a ternura de cada rescender, se desacredita o sonho no enfrentar do presságio da solidão e na ambiguidade exposta por cada estrela. Resta o permanecente luar e a alteração do seu resplandecente brilhar por cada sequencial noite. A firmeza do reencontro, nos caminhos que se cruzam a cada esquina do olhar, se fortalece tenazmente. Há um sol que intensifica seus raios em reflexos de luz sublime. Nada se mantém com o passado, mas o futuro é o passo seguinte. Esqueçam-se os devaneios e faça-se justiça ao sentimento puro e simples. Deixemos que a distância se aproxime de que cada ponto das suas extremidades e, algures, toque o ânimo de cada eloquência. Eis o ponto fulcral onde o amor fará falar os corações.

 
António MR Martins

Como no primeiro dia




  20 - Emanuel Lomelino





 
É teu este coração rasgado
Que o tempo não cicatriza.
É tua esta alma penada
Que no meu corpo se refugia.
Estão em ti os meus pensamentos
Dolorosas lembranças de nada
A tua imagem é tudo o que me resta.
Esse último sorriso
Ingénuo de tristeza
Que na despedida me enviaste
Definha ao ritmo das minhas pulsações.
Esse último olhar
Terno de amargura
Que em mim pousaste
Esvai-se como suspiros.
O teu níveo rosto
Que, tarde na vida, aprendi a amar
Esbate-se da minha memória.
Mesmo assim
Não consigo deixar de te amar
Como no primeiro dia.

Emanuel Lomelino

in livro “Aprendiz de Poeta”, página 43, edições Temas Originais, Coimbra, 2010.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Urge procurar o limite



Entre o barro de porte sereno, moldado da vermelha e húmida terra, e as mãos que o tornaram objecto, se incrementou a lágrima do esforço de tantas vidas. Entre esse modelar preciso, se desenhou o sonho criativo de cada gerador de novos projectos. É como se confluíssem, em reencontro de harmonia plena, múltiplas marés de todas as orlas marítimas, em seduções de volumosa espuma de carícias. Ou como se todos estivessem imbuídos na realização efectiva do mais belo dos sonhos, o da felicidade absoluta. Cada criação torneia os obstáculos que possam afrontar o culminar dessa concretização. A procura de nova fuga para um futuro melhor torna-se ávida e urgente para que a mesma não se torne, cada vez, mais longínqua. E é preciso que essa fuga tenha o respectivo retorno.

 
António MR Martins

na ponta do cais






19 - António Paiva



 
 
é muito mar
é tanto mar
aos olhos das palavras
é diferente o sentido das coisas

estou na ponta do cais

cala-me a boca com um beijo
acalenta-me este sonho vadio
tão pouco
faz com que tanto valha a pena

estou na ponta do cais

mar do outro lado é longe
aqui é tão perto mar
e tu mar
estás aqui e do outro lado também

estou na ponta do cais

 
António Paiva

in livro “Janela do Pensamento”, página 62, Edições Ecopy, Porto, 2007.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Ilimitadas sensações



Nessa pele, remendada de carícias amorfas, onde se enrugam as esperas consumadas. Nesse condimento revelado pelas intenções omitidas em ânsias de tanta espera. Nesse subtil corpo decorado pelo rubor de uma qualquer cereja, estendida na plenitude de toda a contemplação. Nesses poros sequiosos, onde manobram as glândulas de toda a exposta sensualidade em metamorfoses de movimentos inesperados, mas determinantes. Nesse perjúrio revoltante cintila a luz de todo o fragor, regurgitado pela adjacente exteriorização. Nesse todo clamam as fontes das águas onde prima a clarificação do teu ser. Torna-se inebriante esse expoente sem mácula e o sagaz efeito de tanto desejo. Há prazeres que as palavras não conseguem justificar, nem sequer enunciar.

António MR Martins

[o corpo faz-se]





18 - Alvaro Giesta




 
o corpo faz-se
de fragmentos em união constante

tenta o equilíbrio
a harmonia
a força

membros
boca
a língua de sal
em frémito e movimento

o que é fascínio contradiz-se
mas seduz

tenta relacionar-se sedento
por criar um espaço que desfragmenta
em desafios encontros e desencontros

 
Alvaro Giesta

in livro “Meditações sobre a palavra”, um tributo a Ramos Rosa, o poeta do presente absoluto, edições Temas Originais, Coimbra, 2012.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Faleceu João Carlos Martins

 


Faleceu hoje um grande homem da cultura, artista plástico, sobretudo aguarelista, mas também poeta, um excelente poeta, João Carlos Martins. Há algum tempo doente, mas sempre lúcido, decidiu publicar tudo aquilo que foi escrevendo no sentido de o conseguir, ainda, em vida. Não foi possível, mas a obra em livro acontecerá, tenho quase a certeza. Será algo de muito valor para quem ama a língua portuguesa e gosta de poesia, em particular.

Um poeta sintético, na sua explanação escrita, dizendo muito em poucas palavras, mas sempre com uma beleza indescritível, como poucos o conseguirão fazer.

Fica aqui a minha homenagem ao poeta, com a publicação de dois dos seus poemas, da sua obra “Abismo de Palavras”, das páginas 20, 6. e 38, 24., uma edição Temas Originais, Coimbra, 2011.  

6.

Alguém deixou à noite
luzes e vestígios
de quem terei sido:

Talvez os derradeiros
a depositar em mim
a dor e o prazer.

Por um instante assim
a tua voz abriu
um sulco no meu ser.

 
24.

Chego hoje à serra
para ser senhor e rei
de todo este granito.

Desde o início das coisas
só levo do que não sei
carrego do que não sinto.

Levo mais água
no meu cansaço
do que cabe de silêncio
em cada grito.

João Carlos Martins

Alvorecer de virtudes

 
Alhandra, o Tejo, o Bando e o Horizonte, by António MR Martins.


Pela calada se esfuma o silêncio de cada noite e o deserto de palavras que não surgem a preceito. Uma mordaça incorpora todo o isolamento e as mãos não refrescam esse sentido. Nada se expele por entre as amarras da desolação onde o auge se esquece, alheio a todas as conformações. Nesse destempero sereno não permanece o sorriso e a contraposição não assiste a qualquer necessidade. Os ouvidos sentem o ecoar desse silêncio sem as barras de uma prisão consentida. Passa o tempo da madrugada, onde os latidos de alguns seres caninos, em reclamação contínua, resfriam a solidão rarefeita. Mais adiante, a claridade da nova manhã traz consigo o renascer da esperança.

António MR Martins


17 - Diogo Godinho

As minhas noites são iguais aos
meus dias.
Agarro-me à insónia, fiel companheira
de madrugadas em que me relembro
da tua dor, da dor da tua ausência,
da dor do meu pensamento, da dor
enferma, mesquinha, atroz.
A dor que a noite me trouxe entranhada
nas veias.
Deambulo por entre fileiras de copos;
mantos brancos, rostos brancos, pós brancos.
A cabeça estala, esfumam-se cinzas
em que te vejo partir, em que me
vejo partir.
A noite é vida, a vida é noite,
e o dia é nada.
Cumpro horas preventivas
pelo delito da nascença.
A dor agarrou-me
no seu estado indecifrável.
O amanhã é somente agora
e o hoje arrasta-se em ampulhetas
paradas.
Não há luz ao fim do túnel.
A madrugada amputou-me a dor
da razão.
A esperança apanhou a carruagem
da frente
deixou-me apeado na convulsa
nostalgia do presente e
só me esqueci de ti, quando a
tua dor se apartou da minha dor
e os meus olhos se fecharam
nas lágrimas dos teus.
Perdi-me.
Perdoa-me.

 
Diogo Godinho

in livro “Estação Terminal”, páginas 60 e 61, edições Temas Originais, Coimbra, 2011.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Longínquo estabelecer



um pranto se esconde
nas margens do prazer,

há um sentir ileso
de toda a humilhação,

aí outro se consome
nas frestas da inquietude,

o balanço é o corolário
de todas as consequências
e o desnorte intensifica
a efervescência em ebulição,

por tanto tardar a acalmia.

 

António MR Martins

Árvore seca


16 - Carlos Teixeira Luís
 
Sou uma árvore seca.
Seca de poeira e sol.
Ardente de pedra.
Sou uma árvore seca
Jazendo no caminho dos
Caminhantes.

Onde a minha sombra arde.
Aqueço-me
Com o respirar dos cactos
Castanhos,
Com o olho atroz
Do lagarto fugitivo.

Cobra de sonho de gelo,
Vinde à toca curvilínea
Alimentai-vos por meses.
Debaixo da árvore seca.
Seco é o sol
Dos passos de quem aqui morre.

 
Carlos Teixeira Luís

in livro “ HISTÓRIAS DO DESERTO”, página 18, edições Atelier Produção Editorial, Vila Nova de Famalicão, 2009.

Este é um pedaço de um extraordinário livro de palavras maiores, de poesia e prosa (pensantes), e de uma relevante interpretação da escrita. Eu o apresentei, mais a minha amiga escritora Vera Sousa Silva numa sessão de enorme partilha. Este livro é um autêntico tesouro literário.
 

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Esse teu traço

 
Imagem da net.

Ai, menino esse teu traço
terminado entre uma flor,
representa terno abraço
envolvido em tanto amor.

Misto de magia, encanto,
nesse olhar tão carinhoso,
mesmo débil, és um espanto,
um ser assaz delicioso.

Te encaram pelas tristezas
que da vida são mesmo tantas,
perante muitas incertezas
lindas emoções nelas plantas.

Muito atento e lutador
aprendendo por esta vida,
ternurento e demais valor
realças poesia relida.

Não te sobram outros defeitos
pelas qualidades que tu tens
e teus dogmas estão sujeitos
à maldade que somos reféns.

Há que ter regular atenção
pelos teus enigmas humanos,
falando-te com o coração
com pureza e sem enganos.

Que teus pais sempre te adorem
entre teu semblante e teu ser,
que muito amor te aflorem
pois deles vieste a nascer.

Por vezes um simples sorriso
eleva a nossa presença,
um mero olhar indeciso
pode fazer a diferença.


António MR Martins

Apolo



15 - Edgardo Xavier
 

Vens do fundo desta noite
Como uma aurora vibrante
Trazes-me o sol e o tempo

Doces
Como mel a escorrer
Da memória

Vens do fundo desta noite
E do centro da glória
Lavar-me o olhar
De silêncios e deserto
Desperto
Sou a tua seara em flor
O teu azul do mar
O teu céu
Sou o Apolo que viaja
Nos teus olhos

 
Edgardo Xavier

in livro “Corpo de Abrigo”, página 44, edições Temas Originais, Coimbra, 2011.
 

domingo, 16 de dezembro de 2012

“Atlanticidade”

 
Funchal - Ilha da Madeira
Imagem in 1001imagens.blogs.sapo.pt
 

I

Há um oceano
Que separa as margens do silêncio
Em cada descoberta emergente
Onde os cascos das caravelas
Solidificaram um espaço
Hoje fora de todo o tempo

II

Há um navegar precioso
Ultraje de tantas contendas
Na interferência de tantos ideais
Numa junção incompleta
Jamais aceite pelo mundo
Aos olhos das cruéis tormentas

III

Há um encontro de esperança
Ateado pela insegurança
E pelos prémios da revolta
O sentido único é a baía
No albergue de tantos navios
Portadores da mensagem

IV

Há esse mar tão profundo
Que Camões tanto exultou
Na palavra da envolvência
Ai grandioso Portugal
Que te ultimas no desencanto
Em que abandonas tuas ilhas

V

Há um caminho marítimo
Nas preces dos marinheiros
Que se perderam no tempo
Olvidado por tantas gestas
Na troca vil da ganância
Que as levou para outros mares

VI

Há um Atlântico perdido
Em tanta imensidão
Onde a história já pernoita
Águas de tantos segredos
Vitórias de muitos contrastes
Que a memória dissipou

VII

Há o mar da coragem
Mensageiro da ribalta
Num apogeu de um abraço
Que nas falésias embate
O pulsar de suas ondas
Com tanta sofreguidão

VIII

Há a separação nesse mar
Onde se une toda esperança
No encanto de cada chegada
A partida noutro instante
Torna a dividir no vazio
Cada culminar da união

IX

Há um preceito na origem
No âmbito de cada destino
Como mito da descoberta
De João e de Tristão
Imbuídos pelo esplendor
De ver terra no Atlântico

X

Há uma pérola oceânica
Num Atlântico de virtudes
Onde a ponte é espontânea
Tal como o Continente anseia
Pelo caminho mais fraterno
Rumo à Ilha da Madeira

 
António MR Martins

Nota: - Este trabalho foi elaborado a partir de um convite, que me foi feito, e entregue aos CEHA – Centro de Estudos de História do Atlântico, a fim de fazer parte do conteúdo de uma obra a ser publicada no final de 2011, sobre o Atlântico e a Ilha da Madeira, no seu interagir com o Continente, mediante determinados conceitos e pressupostos que, antecipadamente, me foram apresentados. Por dificuldades financeiras não chegou a ser editada, como tal, e com a devida autorização, aqui estou a publicá-la, na íntegra, divulgando-a.